Deixem-me morrer, s.f.f.
Queria só que me deixassem apagar-me em paz, sem sofrimentos desnecessários, num momento por mim escolhido. É assim tão impossível?
Estou cansado. Cheio de dores. Dores no corpo e no espírito. Já nem distingo umas das outras mas não há nada a fazer: tenho de continuar a viver.
Na verdade, “A vida é para viver”, como afirma, numa expressão simples mas plena de conteúdo, o título de um artigo da Rita. Nunca tinha pensado nisso e, ademais, as perguntas que ela coloca são certeiras: Então afinal o que queremos? Uma sociedade sem idosos, sem deficientes e sem acamados? Será a nova forma de apuramento da raça? Que motivação estará por trás de tudo isto? Sim. Qual a motivação para as dores e para o sofrimento em que vivo há tanto tempo sem qualquer esperança?
O Zé Miguel levanta o véu ou desfralda a bandeira, ao escrever que “é preocupante quando vemos forças social-nacionalistas montarem em Portugal, perante a indiferença quase geral, novas estruturas sociais de opressão a adicionar às que já existem. Como a eutanásia”. E mais esclarecedor ainda, o Gonçalo, num artigo com o título “Juramento de Hipócrates ou de Hipócritas?” (subtil e elegante jogo de palavras), informa-nos que “a eutanásia é um 'verdadeiro retrocesso civilizacional e científico' porque, como denunciaram cinco dos últimos bastonários da Ordem dos Médicos, 'não é mais do que tirar a vida'". Só posso agradecer ao Gonçalo esta útil informação mas, verdade seja dita, devo-lhe muito mais. Foi ele, também, que transcreveu, de uma carta aberta de eminentes juristas, este alerta para todos nós: “Desenganem-se os que desdramatizam uma eventual descriminalização da eutanásia, porque uma tal lei porá 'em causa a sustentação do ordenamento jurídico português e a razão de ser do próprio Estado'”.
No meio das imensas dores que há tanto tempo sinto, ou melhor, das dores que já sou, tenho medo. Tenho medo de estar a pôr “em causa a sustentação do ordenamento jurídico português e a razão de ser do próprio Estado”. Não quero! Queria tão-somente pôr termo ao meu inútil e excruciante sofrimento. Acabar com a minha vida e com a minha dor. Mas preservando o Estado, como é evidente. Longe de mim a ideia de colocar em causa o Estado. Antes morrer!
Mas antes de morrer, num esforço derradeiro, virei-me para a Cristina que, num luminoso artigo, me ensinou o que eu não sabia: que “todos sabemos que a vida não nos pertence por completo: foi-nos dada pelos nossos pais como um dom, pelo que não temos domínio absoluto sobre ela. E este ponto reforça os argumentos contra a eutanásia”. Por muito que me doa, a Cristina reforçou os argumentos contra a eutanásia. E contra argumentos, não há factos, por muito que isso me doa, repito. E não são poucas as dores.
Num artigo com o enganador título “O meu corpo é meu” – e é evidente que não é: pertence à Igreja ou ao Estado, conforme formos crentes ou ateus –, o sempre fraterno e humilde Gonçalo explicou-me que “a eutanásia pressupõe que a liberdade deve sempre prevalecer. Mas a liberdade individual nunca pode ser usada contra a dignidade humana”. E o que é a dignidade humana? Nada mais fácil de saber! Escusas de te contorcer com dores, meu farrapo ignorante: pergunta ao Gonçalo que ele diz-te. É tão bom termos quem pense e decida por nós.
O Francisco também tem uma opinião: Aquilo que provoca o sofrimento deve ser tratado, e isso deve ser feito com todas as forças. Assistir na morte não confere dignidade a quem morre. A dignidade está em assistir o doente até morrer. Confesso que no estado de confusão mental em que estou, tive dúvidas: “até morrer” quem? Quem assiste? O assistido? Eu próprio? Quem me dera... mas, de qualquer forma, são verdades como punhos que se abatem implacavelmente sobre o meu já depauperado corpo.
E graças ao Manuel, de quem não ouvia falar há muito tempo e ao seu genial artigo “Com a morte não se brinca”, fiquei a saber que andam para aí uns aldrabões a venderem-me a banha da cobra: Quando o BE e alguns dos seus seguidores no PS se põem a reclamar o "direito à morte assistida" em nome de uma proclamada "dignidade", não sabem do que estão a falar. Nem em abstracto nem em concreto. É assim mesmo, Manel! Fala quem sabe!
Mas, na verdade, eu não queria tanta sabedoria. Queria só que me deixassem apagar-me em paz, sem angústias e sofrimentos desnecessários, num momento por mim escolhido. É assim tão impossível?
(Com os meus agradecimentos ao Observador pela matéria-prima)