Dança com vista para a utopia
Resiste em Companhia, nova peça de João dos Santos Martins, a sensação de uma jornada ao interior da dança.
Seis corpos em compressão silenciosa contra a parede do fundo do palco. Três homens e três mulheres, físicos heterogéneos, de camisetas e calças de treino, sweaters e blusões brancos, com aplicações e pinturas coloridas, contrastam com o tom antracite da parede; pele e carne mornas em atrito com a superfície inorgânica, rugosa, fria.
Ouvimo-los descrever as sensações tácteis do contacto: a dureza do osso sob a bochecha, a tumescência do abdómen, os pulmões que dilatam e retraem, suor e cabelos colados à parede ou a fricção quase erótica com as suas esquinas. Este convite a partilhar com a assistência (informalmente disposta no palco) a experiência interna cita a performance Body Pressure (1974), de Bruce Nauman (EUA, 1941), que convocava o público a uma viagem conjunta à percepção dos limites do corpo e à possibilidade de a mente os transcender.
Os performers amalgamados sobre a parede progridem para o centro da cena. A sós, pares, trios, ou emaranhados, entre vagas de agitação e suspensão, dão uns aos outros instruções ou pedem ajuda: "podes dar-me a mão?" "Peguem em mim, levem-me para outro lugar"; "agora não posso"; "alguém que me abrace!".
Esta ideia de uma “dança assistida” – desenvolvida sem variações significativas, o que torna algo longa a hora seguinte – partiu de uma versão de Trio A (1966), recentemente interpretada por uma Yvonne Rainer octogenária, e do seu Continuous Project Altered Daily (1969-70), uma dança fragmentária e metamorfoseada segundo as vontades momentâneas dos bailarinos. A estas referências somam-se, lia-se na folha de sala, filmes de 1925 da semiesquecida Valesca Gert (1892-1978), diva grotesca, figura de culto das vanguardas artísticas da Berlim do pré Segunda Guerra (nexo menos evidente na peça); e a última dança de Trisha Brown (1936-2017) nas escadarias do Thêatre du Chaillot (Paris), de quem reconhecemos Walking on the Wall (1971), quando vemos intérpretes içados sobre as paredes ou a caminhar perpendicularmente a elas, desafiando gravidade e estabilidade.
Companhia reprocessa todas estas citações, num assumido tributo aos emblemas da dança pós-moderna dos anos 60, e nela João dos Santos Martins (Santarém, 1989) regressa aos seus cúmplices de Projecto Continuado (2015), em mais uma declinação em torno do seu fascínio pelos traços discursivos da História da Dança. Tal trajectória enfrenta uma questão: como voltar a colocar as mesmas perguntas, isentando-as do olhar nostálgico, e construir um universo próprio que ponha em diálogo um quadro mental de época com o dos dias que correm?
Mas se a peça de 2015 evidenciava as pistas onde ancorava, Companhia depura e dilui as conexões aos territórios de referência. Sem o texto da folha de sala e a identificação das obras citadas, não será fácil o espectador menos informado seguir e reenquadrar esta (re)visita guiada.
Resiste, na nova peça, a sensação de uma jornada ao interior da dança. A proximidade envolvente do público aos intérpretes e as imagens de entreajuda, solidão, contrapeso, aflição, solidariedade, afecto ou expectativa ajudam-nos a acreditar nesta Companhia, embalados na doçura da voz intemporal de Billie Holiday (All of me) e no fruto de um labor colectivo não hierarquizado que, em tempos de precariedade e incerteza, traz de volta a utopia democrática e libertária dos pioneiros pós-modernos.