Ainda é com a caderneta que os cubanos vão às compras
“Aos anos que pedimos que abram um mercado grossista e nada. Há um mês abriram o primeiro, mas é só para quem trabalha no campo”, diz Antonio, dono de um paladar.
"Leite em pó, há?", atira uma senhora, ainda da rua, para trás do vidro espelhado de um dos muitos supermercados da cadeia estatal Panamericana, gerida pelas Forças Armadas, em Havana. Não há nem sabemos quando vai haver, responde-lhe o porteiro e segurança da loja — aqui, as entradas fazem-se uma a uma, e todos os sacos que não estejam vazios têm de ser deixados do lado de fora.
As lojas e supermercados abundam na capital cubana, mas nem sempre garantem aos seus clientes o abastecimento com todos os produtos. O cabaz básico, no entanto, está garantido pelo Estado, que reserva dois mil milhões de dólares do orçamento anual para a importação de produtos de primeira necessidade. Apesar de Raúl Castro ter defendido o fim do racionamento, o Governo mantém em vigor a chamada “caderneta” através da qual regula o abastecimento de todos os cubanos. O “livrete para o controlo de vendas para produtos alimentares” é universal: toda a gente tem direito ao seu, embora nem todos tenham direito às mesmas quantidades.
Luís, um antigo bailarino de 75 anos, tem com ele a sua caderneta e também a da vizinha, mais velha e já com dificuldades em deslocar-se, explica. Numa das muitas mercearias do Estado, avia a sua quota de compras mensais: 2,7 quilos de arroz, feijão, açúcar, sal, meia garrafa de óleo, um pacote de café. São dez pesos cubanos, que Luís tem de fazer render. “É até aguentar. Dá até onde der, depois logo se vê o que dá para arranjar”, desabafa. “Não tenho vergonha de pedir ajuda, vivo com dificuldades”, acrescenta, depois de se oferecer para nos acolher na sua casa, mesmo ao lado da Plaza de Armas, no centro de Havana. “Está ao dispôr, se por acaso estiverem descontentes com o vosso hotel.”
Ali perto, na rua San Ignacio, no coração do bairro mais antigo da capital cubana, a vida não corre mal a Antonio Pérez Alonso, dono do restaurante La Moneda Cubana, que abriu portas há 23 anos. Antonio foi um dos primeiros cuentapropistas de Cuba: quando o seu posto de trabalho numa empresa russa foi declarado “extinto”, em 1995, aproveitou a oportunidade que o Governo então concedeu a esses “excedentários” para abrir o seu próprio negócio. Os restaurantes privados — paladares — não podiam ter mais de 12 lugares e neles só podiam trabalhar familiares do dono. Essas regras foram entretanto revistas, para alargar a capacidade a 50 lugares e permitir mais contratações.
Embora não se queixe do negócio, Antonio diz que nem tudo está bem: as taxas cobradas pelo Estado são pesadas, e as regras e leis muitas vezes mudam de um dia para o outro, “sem serem anunciadas em lado nenhum e sem que a gente saiba”. Mas a sua principal reivindicação é uma solução para o abastecimento dos restaurantes, que para este empresário não deviam fazer concorrência à população dependente do livrete de racionamento no acesso aos bens alimentares. “Aos anos que pedimos que abram um mercado grossista e nada. Há um mês abriram o primeiro, mas é só para quem trabalha no campo”, informa.
Depois da passagem do furacão Irma, que devastou parte da ilha em Setembro de 2017, o Governo reintroduzi na caderneta alguns produtos que há muito tinham sido retirados, como detergentes ou ovos, que os cubanos não comeram durante os anos do período especial porque “não havia em lado nenhum”. Agora há, conta uma dona de casa da cidade de Santa Clara, mas continuam a ser prato raro na dieta quotidiana: com a sua capacidade de pagar em pesos convertíveis, os donos de restaurantes privados inflacionam o preço e “açambarcam” todo o produto disponível. “É o mesmo com o iogurte”, garante esta cubana. “Mesmo se temos dinheiro para o pagar, não conseguimos em lado nenhum.”