Poupar o mar, ganhar em terra

Cinco mil pessoas, em seis aldeias do Norte de Moçambique estão desde 2013 a aprender, com uma equipa internacional, a gerir os seus recursos marinhos. Com impacto positivo nos stocks de peixe, e no bolso dos pescadores.

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Numa das aldeias da província de Cabo Delgado, Moçambique Blue Ventures

Não há ninguém que não tenha ouvido aquela receita para a pobreza inspirada num velho ditado chinês: não dê o peixe, ensine a pescar. Mas em Moçambique uma equipa da Sociedade Zoológica de Londres (SZL), liderada pelo francês Jérémy Huet, anda desde 2013 a dar a volta a este texto, ajudando seis comunidades pesqueiras sujeitas à escassez de recursos marinhos com uma estratégia que passa por não pescar... pelo menos temporariamente, e em áreas bem definidas. O projecto Nosso Mar, Nossa Vida pôs aldeias a gerir estas reservas e os benefícios estão à vista nas dimensões do peso e do preço que o peixe, e o polvo, principalmente, atinge nos períodos em que pode ser pescado.

Jérémy Huet, investigador da SZL e do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (Ciimar) da Universidade do Porto, admite que o desafio deste projecto financiado pelo Governo britânico, pela União Europeia e pela Fundação Ensemble foi inicialmente recebido com desconfiança. Com a sua costa dominada por mangais e pontuada por ilhas, o Norte da província de Cabo Delgado, entre o rio Rovuma e Macimboa da Praia, é um hotspot de biodiversidade marinha, graças às correntes que ali depositam larvas e sedimentos, o que atrai a esta região de Moçambique comunidades migrantes que chegam da Tanzânia, atravessando o rio, ou de Nampula e Nacala, a sul, que aqui estabelecem acampamentos provisórios.

Enquanto ali permanecem, estes migrantes concorrem com os locais e pescam tudo o que podem, utilizando técnicas nocivas, como redes de arrasto, redes mosquiteiras e até sacos de arroz, explica o francês que, antes de se envolver com estas comunidades moçambicanas, ao serviço da Sociedade Zoológica de Londres, já tinha trabalhado na Guiné-Bissau, apoiando pescadores a gerir melhor o stock de peixe-serra. “Eles pescam à noite, levam os juvenis e os corais”, e os jovens das comunidades locais “são influenciados” por estes métodos novos, porque trazem mais dinheiro, “deixando em risco de desaparecimento práticas ancestrais e aumentando a pressão sobre os recursos marinhos”, explica. 

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Numa das aldeias da província de Cabo Delgado, Moçambique Blue Ventures

Ao mesmo tempo, com a descoberta, há dez anos, de jazidas de gás no offshore desta zona de Moçambique, é esperado um afluxo enorme de pessoas para trabalhar neste sector. O biólogo explica que a pressão demográfica pode ser uma ameaça para os recursos existentes, potenciando ainda mais a sua sobre-exploração.Mas, se bem gerida, esta migração pode tornar-se uma oportunidade de negócio para as comunidades locais. Principalmente para aquelas que estão mais familiarizadas com os princípios do projecto Nosso Mar, Nossa Vida (Our  Sea, Our Life) que, a par de uma mudança de comportamentos no mar, trabalha em terra, muito graças às mulheres, no desenvolvimento de actividades alternativas à pesca e no estímulo à poupança.

Perante todas estas ameaças já presentes no seu quotidiano, as seis comunidades, onde vivem cerca de cinco mil pessoas que retiram do mar metade das proteínas que consomem, temeram que a equipa multidisciplinar liderada por Jérémy Huet e pela SZL fosse mais uma a querer estragar-lhes a vida — afinal, vinham para lhes propor zonas temporárias de não-pesca. E, como algumas vezes chegou a acontecer, desde logo temiam que não faltasse quem se aproveitasse dessas restrições para, à socapa, entrar nessas áreas, tirando benefício do esforço de todos. Foi preciso muito tempo e, principalmente, uma viagem a Madagáscar com pessoas de duas aldeias envolvidas nos Conselhos Comunitários de Pesca — os CCP, criados no âmbito do projecto — para que estes percebessem as vantagens de não pescar.

Um dia igual a duas semanas

Em Madagáscar, um dos parceiros do Nosso Mar, Nossa Vida, a Blue Ventures, aliara-se a uma associação local para a criação de zonas de interdição temporária para a apanha do polvo, uma das espécies com maior importância também para os territórios moçambicanos em causa. “O polvo é uma espécie que cresce muito rapidamente em três meses, ganhando 500 gramas. E entre o terceiro e o sexto mês tem um desenvolvimento exponencial e pode atingir facilmente os cinco a seis quilogramas”, acrescenta o investigador, notando que esta característica biológica torna o polvo uma espécie muito interessante para demonstrar, em pouco tempo, as vantagens de períodos de não-pesca em áreas determinadas.

Ora, os moçambicanos viram o entusiasmo dos malgaxes com as dimensões, e o valor comercial, do polvo que andavam a pescar depois de criada a sua reserva, e voltaram convencidos de que podiam seguir o mesmo caminho. Foram por isso criadas zonas de não-pesca temporária, abrangendo um total de 500 hectares em áreas entre marés e, instituídos os conselhos locais, que se tornaram o braço do departamento provincial das pescas; constituíram-se equipas de monitorização para garantir que a interdição era respeitada. Os resultados demoraram apenas meses a surgir.

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Numa das aldeias da província de Cabo Delgado, Moçambique Rebecca Short

Num post publicado em Março de 2016, após a reabertura da reserva temporária criada em 130 hectares de águas intertidais (entre marés) em Quiwia, Melita Samoilys, da direcção da Cordio East Africa (consórcio dedicado à investigação e desenvolvimento de soluções para problemas que afectam os ecossistemas marinhos do oceano Índico), descrevia a excitação de pescadores e compradores. “Estavam na praia negociando energicamente, e um recorde de 350 quilos de peixe foi trazido para terra até ao fim do dia — o equivalente às capturas de 15 dias. Os polvos eram enormes, com o maior a pesar quatro quilos. Um pescador apanhou, sozinho, 27 quilos e uma pescadora trouxe 15 quilos”, descrevia, entusiasmada, esta parceira do projecto.

A compreensão, pelos próprios habitantes, do impacto da não-pesca na qualidade e quantidade de peixe e polvo apanhado abriu portas ao passo seguinte, necessário para o reabastecimento destes espaços fechados temporariamente: a delimitação de uma outra área contígua, de reserva definitiva. Um objectivo inicial do projecto, que acabou por ser bem aceite. Até porque, da mesma forma que beneficiaram o ciclo biológico do polvo, as restrições acabaram por ter um impacto semelhante noutras espécies, algumas de grande valor económico, como a garoupa — que, assinala Jérémy Huet, precisa de dez anos para começar a reproduzir-se —, o safio ou o peixe-coelho.

Dar poder às mulheres

“Ao proteger o polvo, eles diminuíram a pressão sobre muitas outras espécies”, regozija-se o investigador do Ciimar que, numa visita à ilha de Quifuke, em 2015, tinha sido confrontado com a perspectiva do desaparecimento dos stocks de peixe até 2025. Em resultado dessa mudança de atitude, não só o cenário começa a dar sinais de inversão, como, quando pescam, os habitantes locais ganham mais dinheiro, que chega para distribuir pelos pescadores e para financiar as actividades administrativas dos Conselhos Comunitários de Pesca, instrumento essencial para o sucesso desta iniciativa, pois cabe-lhes não apenas a monitorização, mas também o apoio à venda do peixe e à distribuição dos resultados.

A mudança de comportamento na pesca é apenas uma parte da equação. Era preciso garantir que as restrições eram cumpridas, mas não era fácil convencer as pessoas a ficarem em terra, de braços cruzados, à espera que o polvo engordasse. E aqui é que entraram outros parceiros, como a AMA — Associação Moçambicana do Ambiente, com sede em Pemba, a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e a Universidade Lúrio, de Nampula, entre outros, que têm procurado apoiá-los na diversificação de actividades e também na gestão dos rendimentos obtidos com o trabalho que são parcialmente reinvestidos na melhoria das condições de trabalho (aquisição de câmaras frigoríficas, por exemplo), ou no apoio a novos negócios.

Jérémy Huet fala com orgulho de uma das iniciativas do Nosso Mar, Nossa Vida: os grupos de poupança, constituídos de forma praticamente paritária e que se tornaram um instrumento de emancipação de mulheres. Pouco representadas nos grupos que tomam decisões nestas aldeias, explica Huet, elas são mais vulneráveis às restrições de pesca em áreas intertidais, onde conseguem pescar sozinhas, e a pé, com redes mosquiteiras (proibidas por lei), e sem necessidade de um barco. “Estamos a dar-lhes mais atenção”, assume este investigador, explicando que, estimulados a poupar um pouco de dinheiro todas as semanas, os membros destes grupos recebem o resultado deste seu esforço ao fim de um ano, o que lhes permite fazer obras nas suas casas, por exemplo.

A primeira fase do projecto Nosso Mar, Nossa Vida termina este ano, mas a equipa não vai deixar o terreno. Jérémy Huet adianta que, depois de uma experiência bem sucedida, estão a analisar a hipótese de estabelecimento de áreas de criação de ostras e de mexilhão precisamente nessas zonas entre marés, o que poderá beneficiar as mulheres e diminuir a pressão da pesca ilegal. “O Governo tem muito interesse no que estamos a fazer. Eles querem desenvolver metodologias de aquicultura para alimentar esses trabalhadores que vão chegar ali nos próximos anos”, afirma o biólogo francês, acrescentando que só em Pemba, a capital da província de Cabo Delgado, se estima que a população possa passar de 150 para 600 mil habitantes até 2040.

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