Sobre a participação das crianças nas notícias
Ter em conta os grupos mais vulneráveis não é um favor que se lhes faz. É uma obrigação ética
Não era um tema controverso. Era só uma reportagem sobre monoparentalidade masculina. Procurámos ouvir alguns pais e as suas respectivas crianças. Ninguém nos pediu que omitíssemos identidades, mas, no final da conversa com o segundo pai, eu e o fotojornalista Paulo Pimenta nem precisámos de falar um com o outro para perceber que, naquele caso, teríamos de o fazer.
Sendo a identificação das fontes regra, para tudo há excepções. E a cobertura jornalística exige especial cuidado com crianças.
O Código Deontológico do Jornalista, revisto em 2017, refere que “o jornalista não deve identificar, directa ou indirectamente, as vítimas de crimes sexuais”. E que “não deve identificar, directa ou indirectamente, menores, sejam fontes, sejam testemunhas de factos noticiosos, sejam vítimas ou autores de actos que a lei qualifica como crime”.
Há que admitir que a redacção desse artigo é infeliz. Parece que em nenhuma circunstância se pode identificar crianças (o que seria um atentado à Convenção sobre os Direitos da Criança, que salvaguarda o direito à expressão e à opinião — e as opiniões anónimas não têm, ou não devem ter, lugar). Mas o que está em causa, e é fundamental, é a protecção da identidade na cobertura jornalística de actos tipificados como crime.
A criança referida não fora vítima de crimes sexuais. Tão-pouco fora testemunha, vítima ou autora de qualquer outro crime. Nem por isso, porém, a protecção da sua identidade deixara de se impor. O pai batera-se pela guarda exclusiva por a mãe ter iniciado um problemático percurso de consumo de drogas. Com grande dedicação, educara a filha sozinho. Volvidos alguns anos, refizera a sua vida amorosa. Assumira uma relação com um homem. E, entretanto, a mãe recuperara. Estavam no começo de uma nova fase, com guarda partilhada e residência alternada. Não podíamos ignorar o facto de a criança ter decidido que não queria aparecer, sequer falar com o jornal. E que identificar o pai seria, de certo modo, identificá-la, expondo-a ao julgamento dos colegas da escola, porventura menos preparados para lidar com a diferença. Era evidente que não o podíamos identificar.
O direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar está consagrado na Constituição, a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Risco reclama respeito pela privacidade em caso de risco social e a ética jornalística não ignora esses preceitos. O código diz que “o jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos, excepto quando estiver em causa o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente, valores e princípios que publicamente defende”.
Partilhei esta história em Março, no V Encontro Nacional sobre Maus Tratos, Negligência e Risco na Infância e Adolescência, organizado pela ASAS – Associação de Solidariedade e Acção Social de Santo Tirso. E logo ali Lídia Marôpo, professora adjunta do Instituto Politécnico de Setúbal e investigadora integrada no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa, corroborou que a preservação da identidade das crianças em risco é o primeiro grande desafio de qualquer cobertura jornalística respeitadora dos direitos das crianças.
Aquela especialista, autora dos livros A Construção da Agenda Mediática da Infância (Livros Horizontes, 2008) e Jornalismo e Direitos da Criança — Conflitos e Oportunidades em Portugal e no Brasil (Editora Minerva, Coimbra, 2013), apontou outros desafios: evitar a estigmatização, ultrapassar a perspectiva factual, promover a pluralidade de fontes, privilegiar o ponto de vista das crianças, fazer o enquadramento público-privado, difundir a busca de soluções.
Não se pode dizer que haja um ambiente favorável à participação das crianças. E este, a meu ver, é o outro aspecto fundamental. As instituições (as escolas, os centros de acolhimento, os centros educativos, as comissões de protecção) tendem a dificultar o acesso às crianças. Na ânsia de as proteger, negam-lhes o direito a expressar os seus pontos de vista. Entre os adultos que concedem deixá-las falar, há os que têm tendência para falar por cima delas. E nós, jornalistas, nem sempre nos conseguimos libertar do espartilho tecido pelas nossas rotinas. Falar com crianças exige tempo para ir aos sítios, para quebrar o gelo, para ouvir. Não dá para entrevistá-las por telefone ou por correio electrónico. E há que assumir alguns cuidados.
Quando me pedem para falar sobre este assunto, gosto de lembrar meia dúzia de princípios propagados por entidades como a Federação Internacional de Jornalistas. 1. Não custa o jornalista colocar-se ao nível da criança. Há várias estratégias que o livram de olhar de cima para baixo. Basta arranjar um banco mais pequeno ou curvar-se sobre a mesa. 2. Não é preciso fazer uma voz afectada. Ser criança não é ter défice cognitivo. Há que conversar com ela com naturalidade, mostrando um interesse genuíno pelo que ela tem para dizer. 3. Não se deve julgar a criança, nem os adultos que fazem parte da vida dela. O melhor é abster-se de comentar, até por haver muita ambivalência nas histórias de abuso, mau trato, negligência. 4. Funciona a regra básica: fazer perguntas simples, directas — mais abertas a arrancar, mais fechadas com o avançar da conversa. Se a criança der sinais de estar a ficar transtornada, o melhor mesmo é levar a conversa para outro lado e regressar por outra via. 5. Há que respeitar o ritmo da criança. Se ela quiser parar, pára-se. 6. Não identificar não quer dizer usar nome falso, é bem mais complexo.
Tenho uma espécie de mantra: todos — homens, mulheres, trans, crianças, adultos em idade activa ou reformados, pessoas saudáveis, com doenças físicas ou mentais, de diferentes etnias e cores, de diferentes ideologias e crenças religiosas, de diferentes orientações sexuais, de diferentes condições sociais e económicas — têm direito a expressar os seus pontos de vista e a ser ouvidos nos assuntos que lhes dizem respeito. Ter em conta os grupos mais vulneráveis não é um favor que se lhes faz. É uma obrigação ética e um factor de coesão social e de democracia de qualidade.