“Com a crise política o Congresso sentiu-se livre para acelerar o cancelamento de direitos"

A directora da Amnistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck, diz que a violação dos direitos humanos é “muito intensa”. Isso que pode abrir espaço político aos que “aparentemente são contra o sistema”.

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Jurema Werneck Daniel Rocha

Faz neste sábado um mês que a vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco foi assassinada. Um crime que feriu a democracia brasileira, diz Jurema Werneck, que este em Lisboa para falar sobre os direitos humanos no Brasil.

Qual é o estado dos direitos humanos no Brasil?
É bastante preocupante. O Brasil é um país onde a violação dos direitos humanos é muito intensa. Por exemplo, na situação da segurança pública – os dados dizem que em 2016 foram assassinadas mais de 60 mil pessoas, a maioria jovens, negros e das favelas. A maioria das mortes foi por arma de fogo. Um país que mata tantos não é tranquilo.
Esta situação de segurança pública tem muito a ver com a opção política de importar a chamada guerra às drogas. Que traz violência, traz armas de fogo, traz morte, traz criminalização crescente – o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. E são os mesmos jovens que hoje são assassinados. E isso é uma situação principalmente urbana. A população rural também viu estes direitos bastante violados. Os defensores dos direitos humanos, principalmente os do campo, aqueles que lutavam para defender os seus próprios direitos, estiveram em grande vulnerabilidade e em grande risco. O que fez com que o Brasil também se colocasse como um dos países da região que mais mata defensores dos direitos humanos.

A situação piorou nos últimos tempos, com a mudança de Presidente, ou já vinha de trás?
Já vinha piorando. Mas a verdade é que a instabilidade política do processo de destituição [da Presidente Dilma Rousseff] e da chegada de um novo Governo facilitou bastante. O Congresso sentiu-se livre para aprofundar ou acelerar um pouco mais o cancelamento de direitos. 2016/17 foram passados em forte crise económica e política, e essa crise funcionou como uma cortina de fumo no Congresso, que viu ali uma oportunidade (estávamos todos atentos à crise política e económica) para promulgar uma série de projectos de lei que retrocediam em matéria de direitos. Nós acompanhámos mais de 200 projectos de lei. Em quatro áreas: direitos da criança e adolescentes; direitos sexuais e reprodutivos; segurança pública, principalmente no que se refere à questão das armas de fogo; e a titulação das terras. Genericamente, o Brasil não vai nada bem.

As intervenções militares de combate à droga têm funcionado?
A intervenção militar não funciona. Na última década, o Brasil, e em particular o Rio de Janeiro, recorreu aos militares 13 vezes. Mas os militares não foram feitos para isso. A segurança pública é uma questão de melhoria objectiva da vida das pessoas e até de mudança de enfoque. Enquanto a política de segurança pública que está em curso continuar nessa metodologia de guerra, de confrontação, elegendo um inimigo — que é o jovem negro, de favela, suposto traficante — e achar que a solução é eliminá-lo, não vai funcionar. O que isso vai trazer é mais morte, mais dor, mais perda, mais desestruturação comunitária. É verdade que a indústria das drogas, a indústria do crime, tem um forte poder económico. Há um juiz brasileiro, Walter Maierovitch, que diz que “não existe crime organizado sem a participação do Estado”. Há outras medidas, para além do confronto bélico, que precisam de ser levadas em conta o quanto antes. 

A criminalidade será um tema a explorar pelos candidatos à presidenciais de Outubro para obterem melhores resultados?
A situação da segurança é realmente um problema. Entendo que é a obrigação de todos os candidatos e partidos abordarem esse tema e avançarem soluções. O que não é possível é procurarem soluções fáceis. E o que tem sido produzido são respostas ineficazes – a guerra às drogas, por exemplo, ou o crescimento da militarização. Na vida real não são soluções e expõem ainda mais as pessoas à violação dos seus direitos. É preciso que a agenda proposta seja de facto debatida e que não seja uma agenda que se proponha repetir os erros do passado.

Jair Bolsonaro — que nas sondagens está em segundo lugar, com 20% das intenções de voto, atrás de Lula da Silva (30%) — tem sido o pré-candidato que mais tem falado sobre isso, com propostas sobre o acesso livre às armas. É isso que os brasileiros querem ouvir?
Entre os brasileiros cresce o desagrado em relação a todos os políticos. E isso abre espaço para vozes que aparentemente são contra o sistema. Os eleitores estão à procura de novidade. Novidades que signifiquem soluções. Qualquer discurso que pareça fora do padrão vai ser sempre ouvido como possibilidade. Mas não posso prever o que é que os eleitores vão decidir: certamente vão decidir por uma vida melhor, por soluções consistentes e sustentáveis. E por algo que não repita erros do passado. A experiência brasileira diz que mais armas só produzem mais morte. Espero que esse debate possa ser desenvolvido de forma mais profunda, para que a população possa vocalizar o que está à procura. E não está à procura de uma guerra.

Que consequências um processo como a Lava-Jato na sociedade brasileira?
A sociedade brasileira procura soluções para a corrupção. Qualquer tentativa de colocar um travão na corrupção, no desvio dos recursos públicos, vai ser vista como uma coisa boa pela população. Não há apenas desagrado com a classe política por causa da corrupção mas também uma necessidade de se apresentarem soluções concretas para as políticas públicas que vêm sendo desmanteladas, que vêm sendo subfinanciadas. Estou também a falar de saúde e da educação. Acho que tudo isso deve pesar na visão da população.

A prisão de Lula da Silva é uma questão de direitos humanos, política ou jurídica?
É uma questão política para o Brasil como um todo. Do ponto de vista dos direitos humanos, a nossa preocupação é a de que todos os brasileiros tenham direito a um processo justo. E que tenham acesso ao devido processo legal. 

O assassínio da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco é apenas mais um caso de criminalidade ou há algo mais neste crime?
A criminalidade é muito alta. O Brasil assassina por ano 60 mil pessoas. O assassínio de Marielle Franco insere-se nesse conjunto. No entanto, há uma diferença importante que coloca este crime noutro patamar: era uma mulher negra, lésbica, de favela, que defendia os direitos humanos. O assassínio dela aproxima-se do facto de o Brasil expor muito ao risco os que defendem os direitos humanos. Tanto na cidade como no campo. A execução de Marielle Franco é também um atentado directo à democracia. Há um outro detalhe: foi assassinada perto de fazer um mês da intervenção federal na segurança pública no Rio. Também tem outra dimensão bastante grave. Prometia ter um futuro muito importante na história do Rio de Janeiro, o que torna o assassínio um capítulo à parte na história da violência no Brasil. 

Está confiante numa conclusão da investigação?
As autoridades brasileiras têm obrigação de apresentar uma resposta. Precisam de dizer quem matou, quem mandou matar e porquê. E esperamos que a partir daí, todo o sistema ofereça um processo justo e com os resultados que estejam à altura do grave crime que aconteceu. 

Perante esta convulsão social e política, prevê que surjam obstáculos no trabalho da Aministia  no Brasil?
O nosso trabalho é mobilizar gente para lutar pelos direitos humanos. Significa que o nosso trabalho vai ser o mesmo. Mas navegar entre desafios é o que fazemos. Temos muito trabalho pela frente? Temos. E enquanto o Brasil não mudar, enquanto não respeitar a sua própria Constituição, enquanto não respeitar os direitos humanos, temos muito trabalho pela frente. A nossa expectativa é que haja menos [trabalho]. Porque a sociedade, a partir do assassínio de Marielle Franco, por exemplo, está extremamente mobilizada por justiça. Está a prestar mais atenção à protecção dos defensores dos direitos humanos. Está a debater a necessidade de proteger as pessoas que lutam. 

A democracia brasileira está em risco?
Uma parlamentar foi assassinada no centro da cidade e estava em pleno exercício do mandato. A democracia foi bastante ferida nesse momento.

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