Curlândia, o istmo que tem de ser visto
É uma língua de 98 quilómetros, uma boa parte no enclave de Kaliningrado, da qual poucos falam. É como um segredo que aos poucos revela dunas, praias solitárias, lugares tão inspiradores e tão desconcertantes como o Vale do Silêncio e o Vale da Morte, de uma beleza que facilmente seduziu Thomas Mann.
Aquele era o primeiro ferry a partir de Klaipeda para Smiltyne.
O interior da embarcação pintava-se de rostos sonolentos, não de quem, como eu, desperto pela curiosidade, procedia à travessia pela primeira vez, mas rostos de alguém que passa para a outra margem com um gesto tão rotineiro como sentar-se à mesa para uma refeição ou deitar-se, ao fim de um dia longo e cansativo, na cama.
Plantando um olhar mais demorado, percebo que a moldura que me é dada a contemplar, agora que o céu começa a exibir uma tonalidade rosada, está parcialmente preenchida por rostos sulcados por rugas.
Ir de um lado ao outro, daquela cidade portuária situada a quase 300 quilómetros da capital lituana, Vílnius, até à porta de entrada no istmo da Curlândia, vizinho do mar Báltico, não rouba mais do que 15 minutos, o tempo suficiente para pensar que estes homens, cabeceando um sono, como marionetas, têm muito em comum. Logo ao lado de quase todos, uma cana de pesca, são reformados, a independência e todo o processo que se seguiu, de 1991 até aos dias de hoje, encontrou muitos deles num beco sem saída para onde foram atirados pelo desemprego e por uma certa incapacidade para acompanhar os novos ventos que sopravam do Ocidente.
Embrenhado nestes pensamentos, já nem me recordava de como, ainda antes dos primeiros alvores, fora obrigado a correr para o ferry não partir sem a minha companhia daquele cais banhado por uma luz pálida que àquela hora se estendia à cidade, conferindo-lhe um ar tão nostálgico. Agora, mal o barquinho atracou em Smiltyne, podia caminhar a passo, sem pressa, para o autocarro que aguardava a chegada dos passageiros que, com as suas canas de pesca, uns mais solitários do que outros, não tardavam a ser despejados, saindo aqui e ali, seguindo nesta ou noutra direcção — para o mar ou para a lagoa.
Imagino, quando ninguém mais resta, além do motorista e eu, agora que Nida dista poucos quilómetros, um autocarro rolando por uma franja de alcatrão que se semelha a uma banana, na verdade um istmo que a UNESCO relevou, já em 2000, inscrevendo-o na lista do Património Mundial, e cuja magnificência corre ao lado da janela como um convite à sua descoberta.
Há outra imagem que, umas horas mais tarde, me assalta. Estar na presença de um deserto. Só mais tarde.
Logo ali, naquele momento, mesmo dentro de um autocarro, senti que seria fácil deixar-me atrair por um lugar que me parecia uma miniatura e, ao mesmo tempo, tão grandioso. Não será, também, a beleza que atrai pescadores a este istmo que é para velhos — interrogava-me.
- O meu pai também é pescador e adora fugir do barulho da cidade para ouvir os sons da natureza. Para ele não é motivo de tristeza chegar a casa, ao fim de umas horas, sem ter pescado um único peixe. Mas é verdade que, em alguns casos, é importante ganhar algum dinheiro extra com a pesca, se bem que, de uma forma ou de outra, todos eles se sentem seduzidos pelo cenário e pelo silêncio.
É Deimante Klimaityte, responsável pelo turismo da região, quem o afirma, com uma expressão sorridente que contrasta com a frieza das estatísticas — anualmente a península é visitada por apenas 33 mil turistas, a maior parte deles durante o Verão, uma elevada percentagem de lituanos mas também muitos alemães, especialmente idosos.
Os Verões de Thomas Mann
Há quase 90 anos, em 1929, já na meia-idade, também Thomas Mann se deixou cativar por estas paisagens tão inspiradoras e tão mergulhadas em serenidade depois de uma visita a Rauschen, a toponímia pela qual é conhecida entre os alemães a cidade de Svetlogorsk, situada no enclave russo de Kaliningrado (o istmo, com um total de 98 quilómetros de comprimento, é dividido pelos dois países, cabendo à Lituânia 52 quilómetros e os restantes à Rússia, onde a faixa não ultrapassa, perto da aldeia de Lesnoy, já próxima da península de Sambian, os 400 metros de largura).
Recordando a sua visita a Nida, Thomas Mann, autor, entre outros, de Morte em Veneza, Os Buddenbrook e A Montanha Mágica, escreveu: “Passámos alguns dias na aldeia piscatória de Nida e ficámos tão impressionados pela indescritível beleza e singularidade dos seus arredores que decidimos construir uma residência permanente neste lugar.”
Sob o peso de algumas nuvens pelo meio das quais o sol rompe de quando em quando, caminho por este território tão invadido de tranquilidade até chegar a uma casa com umas delicadas portadas pintadas de azul, rodeada de um relvado bem tratado e por pinheiros que espalham a sua sombra, tudo abraçado por uma cerca baixa de madeira.
Um ano após a primeira visita do escritor alemão a Nida, em 1930, a casa de Verão, projectada pelo arquitecto Herbert Reissmann e financiada em grande parte pelo dinheiro recebido com o Nobel que lhe fora atribuído no ano anterior, estava pronta a ser habitada. É nela, plantada na Colina da Sogra, que poiso agora o meu olhar, nessa reminiscência de uma casa de pescadores que se tornou na residência de Thomas Mann. Se a fito uma vez mais, sem ignorar a envolvência, toda a quietude, não sinto dificuldade em perceber a que ponto a criatividade pode ser estimulada, num cenário que também se preenche de descanso e relaxe.
Thomas Mann estava verdadeiramente encantado com o pequeno mundo que o rodeava. A 16 de Julho de 1930, franqueava a porta da sua casa no Báltico pela primeira vez. “A vista sobre o mar, que nos faz imaginar que estamos na costa do mar Mediterrâneo — a areia exacerba essa impressão. Jantar no Norte, uma mistura de Toni Kreger, tão familiar e tão adorável como nos velhos tempos”, recordaria mais tarde o escritor esses três verões (entre 1930 e 1932) passados em Nida, virado para um pedaço do Báltico que ele desconhecia por completo.
No aconchego da casa na Colina da Sogra, estimulado pela paisagem que lhe despertava a criatividade, Thomas Mann escreveu ensaios, cartas, artigos e José e seus irmãos, uma tetralogia que o autor considerou a sua maior obra e que é composta por quatro volumes: A história de Jacob, O jovem José, José no Egipto e José, o provedor.
Foi em Nida, também, que Thomas Mann editou um alerta sobre o pogrom Königsberg O que é que nos espera, um prenúncio dos tempos que se aproximavam, a ascensão ao poder de Hitler (que fez um discurso na cidade de Königsberg, no actual enclave de Kaliningrado e a maior da Alemanha Oriental até à II Guerra Mundial, em Julho de 1934), a perseguição aos judeus e aos polacos, até à destruição da urbe pelas tropas aliadas e ao acordo resultante da conferência de Potsdam, permitindo a anexação de Kaliningrado pelos russos.
Estes eram motivos mais do que suficientes para Thomas Mann, um dos maiores opositores do nazismo, partir para um exílio forçado na Suíça, em 1933, e deixar para trás as inesquecíveis paisagens do mar Báltico, de Nida e dos seus arredores. Mas, a despeito da turbulência que conduziu à II Guerra Mundial, aos conflitos, a casa onde Thomas Mann viveu na actual Lituânia manteve-se em razoável estado de conservação, até um ponto em que, não sendo mais do que uma ruína, foi salva pelo escritor lituano Antanas Venclova, com uma ou outra restauração ao longo dos anos, a mais recente das quais, com o apoio dos governos lituano e alemão, a meio da última década do século passado, quando se transformou no Centro Cultural Thomas Mann e num museu.
Os carteiros de Neringa
Deixo o museu para trás mas não os pensamentos e as reflexões. Antes ainda, recordo-me de uma frase de Deimante Klimaityte, no posto de turismo de Nida. “O que se sente é difícil de explicar. Eu diria que é refrescante estar num ambiente tão tranquilo, vivendo em harmonia com a natureza.”
É verdade. Curonian Spit sempre atraiu, até à chamada panorâmica italiana, assim designada por artistas e fotógrafos em finais do século XIX e princípios do século XX (e mais ainda quando Thomas Mann mandou erguer uma casa na área), pintores como Max Pechstein, Karl Schmidt-Rotluff, Ernst Mollenhauer ou Lovis Corinth, homens entusiasmados com o istmo, talvez perturbados com tanta beleza, como Wilhelm von Humboldt ou Louis Passarge, que identificou o lugar como tendo, entre os seus mais estranhos aspectos, uma clara inexistência de uma escala de comparação, uma possível referência aos 400 metros de largura registados do lado russo ou aos 3800 em território lituano. A geografia de Curonian Spit é, pelo meio da sua beleza, feita de números que estendem as minhas reflexões sobre este segredo tão bem guardado da Lituânia, da Europa e do mundo. Não há muito tempo, eram 79 quilómetros de dunas e desses restam pouco mais de 30 nos dias de hoje. E 30 quilómetros de dunas é muito.
Haverá explicação para este declínio das areias. No primeiro ano da década de 1970, cinco vilas, como Nida, Preila, Pervalka, Juodkrante e Smiltyne, onde desaguara no ferry vindo de Klaipeda, naquela mesma manhã dos rostos sonolentos e tão carregados de sulcos, consolidaram-se como partes integrantes de uma cidade global a que decidiram chamar Neringa. Com a ideia chegou o desenvolvimento, à custa de cimento, de pedra, de pó, de metal barato, a cidade parecia sufocar nessa avalancha, até ser surpreendida pela decisão das autoridades governamentais, quando declararam toda a área como parque nacional.
Neringa, o nome, deriva da palavra lituana neria, a qual descreve uma faixa de terra que se destaca da água e que é criada pela acção das ondas. Durante a Guerra dos Sete Anos, a floresta que cobria parcialmente as dunas, funcionando como protecção natural contra a erosão, transformou-se em madeira para a construção de navios ou em lenha para a lareira, provocando praticamente a destruição da floresta. A região terá, eventualmente, aprendido a lição, vendo desaparecer, sob as dunas, pequenas aldeias como Kunzen, Neustadt, Predin, Negein, Karwaiten, Pillkoppen e Lattenwalde, ao ponto de aceitar, já na década de 1980, a batalha contra a destruição da areia, materializada através de programas de plantação e de reflorestação. Quem mergulha, profundamente, na história do país, em tempos tão grande na história da Europa, não pode ignorar, na primeira metade do século XIX, o chefe dos correios, David Gottlieb Kuwertas e o seu filho, Georg.
Ambos estavam dispostos plantar árvores no istmo da Curlândia. Mas as árvores não cresciam nesse mar morto, tão feito de areia, soprando com tanta força que rapidamente cobria qualquer rebento. Pai e filho construíram protecções contra o vento na parte mais ocidental da estrada e plantaram espécies resistentes à seca, utilizando estrume produzido pelos cavalos. Não só estavam a salvar Nida como a impedir que as areias invadissem a estrada por onde seguiam os carteiros, David Gottlieb Kuwertas e o filho, Georg.
Eles próprios.
Ainda hoje, de vez em vez, os habitantes locais olham as suas sepulturas num antigo cemitério localizado nas florestas de Nida, imortalizando, através de um gesto nobre, a luta destes homens contra as areias.
Uma peça, esculpida em madeira, ao lado de um banco a esta hora solitário, presta homenagem a David Gottlieb Kuwertas na principal praça de Nida.
O Vale do Silêncio
Afasto-me do centro de Nida com uma frase de Deimante Klimaityte martelando-me o cérebro. “Eu vivi a minha infância em Neringa, na minha memória permanece a recordação de um espírito livre, desse adorável cheiro da floresta e do sorriso das pessoas.”
Uma senhora, carregando já alguns anos aos ombros e passeando um cão, também sorri na minha direcção, recortada por três elegantes casinhas de madeira pintadas de cores fortes mas abertas apenas no Verão, quando o turismo ganha verdadeiramente expressão por estes lados ainda assim tão ignorados do Báltico. A partir de Nida, os trilhos abrem-se para dar a conhecer um mundo mágico, tão silente, tão desprovido, na maior parte do tempo, da presença humana.
Observo, à distância, um casal, ele munido de uma grande objectiva, ela confiando apenas no olhar. Se o silêncio é rompido, é pelos pássaros que cruzam o céu ou se escondem, cantando, entre os ramos das árvores.
Estou no Vale do Silêncio, no sopé mais a norte da duna de Parnidzio, um recanto sereno rodeado de outras dunas (a mais alta chega quase aos 70 metros), onde, para comemorar o restabelecimento da independência lituana, em 1991, repito, se colocou um marco no início do vale que também é ponto de partida para os aclamados trilhos cognitivos.
Tão perto do Vale do Silêncio está o Vale da Morte, uma enorme extensão de areia, cortada aqui e acolá por vegetação rasteira, fundindo-se no azul do mar de um contorno pouco definido.
Junto à praia, sobre a areia, projecta-se uma cadeira de dimensões biblícas para o lugar. Tendo como base também uma estrutura de madeira, a cadeira acolhe quatro degraus que conduzem a um, num plano superior, onde todos gostam de se sentar.
Como um soberano, sob a sombra de uma cadeira de madeira com cinco metros de altura, qualquer viandante aprecia ficar abandonado por ali uns instantes, contemplando a força da natureza à sua volta, mas mais — e sempre —, o silêncio tão apaziguador deste cantinho da Lituânia.
O trajecto é agora mais penoso, mais exigente, mas não ao ponto de reclamar dele. Por entre as árvores, por vezes sobre as suas copas, já se avistam o vermelho e o branco do farol, por vezes parecendo tão perto, por vezes cada vez mais longe. Sem que esse vigilante dos mares me desapareça do campo de visão, encontro, depois de subir, o relógio que não me incentiva a verificar o tempo neste período de tempo que não recomenda relógio.
Olho o sol que rompe por entre a cortina de branco e cinzento. Que horas são? 17h15 no relógio de sol, espero não estar a enganar-me. Dali, onde os ponteiros da vida se expõem aos raios solares, a panorâmica vale muito mais do que o tempo, até se esquecem as horas.
E o farol olha-nos sempre, atento aos nossos passos.
Se fosse vivo, é provável que Thomas Mann ainda gostasse de passar o Verão na Colina da Sogra. Neste pedaço do Báltico que ele desconhecia. Como tantos entre nós. O istmo tem de ser visto.