Uma banana não é uma maçã
Na verdade, o “pecado” por mim cometido foi usar como inspiração uma ínfima e irrelevante parte do livro de Deana Barroqueiro, até agora desconhecido.
(Do texto de José Pacheco Pereira, publicado neste jornal, sobre a hipótese de uma maçã passar a ser uma banana se mil vezes for repetida tal afirmação.)
Vivemos tempos ruins, os de Trump, os do triunfo das inverdades, do tráfico das redes sociais, os dos jornais transformados em pasquins, os das revistas cor-de-rosa, os da violação da privacidade e de coisas piores. Confrontado com uma campanha difamatória, tinha decidido não responder nos ditos “meios de comunicação”, porque a praça pública é um pasto. Também não queria alimentar o ensandecimento da senhora Deana Barroqueiro, autora de romances. Mas apareceram meia dúzia de “hienas” a utilizar esta acusação infundada e apetece-me ser sério. Revolta e indignação são o que sinto.
Segundo a senhora Deana Barroqueiro, eu nem sequer teria lido a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e ter-me-ia limitado a adaptar o seu extenso e ilustre romance. Mais triste é a divulgação pública de uma carta delicada e pessoal que – no puro intuito de usar de boa educação e de respeitar uma eventual susceptibilidade, ainda que descabida, de uma senhora que desconhecia – por gentileza lhe remeti. Essa carta teve lugar na sequência de um pedido da editora para utilizar fotografias do filme em páginas do romance bem como a colocação de uma cinta onde estaria escrito “Peregrinação, um filme de João Botelho, inclui episódios adaptados do romance O Corsário dos Sete Mares”. Em meados de Dezembro do ano transacto, o acordo com a editora Leya foi efectivamente estabelecido. A editora Leya chegou a referir num email enviado à produtora “Ar de Filmes” o seguinte: “Gostaria de agradecer a vossa paciência e ajuda em todo este processo.”
Vamos então aos factos:
O filme é composto de 78 cenas, das quais apenas duas poderão revestir interesse para efeitos da aferição da existência do suposto plágio. No limite, há uma relação de inspiração com o romance da senhora Deana Barroqueiro, o qual, tenho de o dizer, apenas agora e para poder responder com rigor, li na íntegra. Mesmo nestas duas cenas não existe um único diálogo que coincida com os diálogos do referido romance. Mais, cada uma destas duas cenas foi refeita para criar uma narrativa cinematográfica que só com maldade se pode comparar a cenas do romance da autora:
– Fernão Mendes Pinto e seus companheiros são recebidos na casa do Monteo: nesta cena, um nome (Liu Xugang) e uma pequena parte de um poema, musicado pelos compositores do filme, existem no romance de Deana Barroqueiro. Mas também existe na Peregrinação de FMP onde, tal como eu, terá a DB procurado inspiração.
– A cena do banho: está referida no romance da autora mas é a filha de Liu Xugang, que chamei Meng, que lhe lava as feridas. Esta Meng não tem a ver com uma personagem do romance da Deana Barroqueiro, também chamada Meng e que aparece na narrativa muito mais tarde, junto à muralha da China. Aí impera como punição o Fado de Fausto e como salvação a chegada dos Tártaros.
Não obstante, não quero deixar de exercer o meu contraditório nas restantes acusações:
1. O episódio de D. Joana da Silva, a mulher adúltera de D. Francisco Faria e amante de D. Manuel Freire – Deana Barroqueiro reivindica que este episódio é da sua autoria bem como os respectivos nomes desses personagens. Ora, tudo isso existe nas biografias de Fernão Mendes Pinto e é um episódio relatado por Fausto na sua bela canção, escrita mais de 30 anos antes da publicação do romance de Deana Barroqueiro, e por Gil Vicente, há cerca de 400 anos (!) na Farsa de Inês Pereira, peça de teatro escrita para gáudio da corte de D. João III.
2. Episódio da violação da noiva chinesa – No romance da autoria de DB é Fernão Mendes Pinto quem viola a noiva chinesa. Na Peregrinação é António Faria – o heterónimo que Aquilino Ribeiro justamente propõe para encarnar o mal e mostrar a complexidade do ser humano – quem comete esse crime.
3. Episódio japonês de Wakasa – A filha do armeiro do senhor Tagenashima. Esta é uma lenda japonesa com muitos séculos e, tal como DB provavelmente fez, encontrei-o através de pesquisas que eu próprio fiz com o auxílio da produtora “Ar de Filmes”. Ainda nos dias de hoje em Tagenashima – Ilha da Espingarda – há uma festa anual em que um homem caracterizado de marinheiro português do séc. XVI empunha uma espingarda, é acompanhado pela bela japonesa por quem se apaixonou e encabeça um cortejo comemorando a chegada da arma portuguesa ao Japão. Esta lenda pertence ao domínio público.
4. Episódio do bordel – Em vez de vulgares e ordinárias, cheias de palavrões, viagens aos bordéis por FMP e seus companheiros, criei uma única cena num bordel, onde Cristóvão Borralho (e só ele) aprende de uma forma delicada, e pela voz da prostituta, a melhor maneira de obter o prazer sexual. Nunca poria “o meu” FMP a ir a um bordel.
5. Mais de um terço do filme é constituído por cenas que referem a dificuldade da vida de Fernão Mendes Pinto em Almada, o trabalho e a grandeza da sua escrita e o não reconhecimento dos seus feitos pelos nobres (que o ignoram), pelo clero e pelo povo (que aproveitam para transformar o “Pinto” em “Minto”.) Nada disto está no romance de Deana Barroqueiro. Outro terço do filme é organizado pelas encenações em momentos precisos das canções criadas por Fausto, o que muito me orgulha. Outro personagem, criado por mim, e que ocupa quase o filme todo, resumindo num só, os múltiplos intérpretes que FMP refere no seu livro de viagens, não existe no romance de Deana Barroqueiro – trata-se do “Intérprete Malaio”, que conhece todas as línguas e todos os povos.
6. O célebre número 9. Este número é referido vezes sem conta, no texto da Peregrinação de FMP, normalmente após os naufrágios ou outras desgraças. “Nós os nove...” Tem a ver com a novena cristã. Não é nenhum número mágico inventado pela senhora Deana Barroqueiro.
Em toda a minha longa vida de cineasta, em todos os meus filmes afirmo a impureza do cinema, como “vampiro” das outras artes e sempre me servi de pintores, poetas, dramaturgos, músicos, arquitectos, como fontes de inspiração para criar situações cinematográficas. Um só, de dezenas de exemplos: quando pedi ao poeta Alexandre O’Neil para lhe “roubar” o título do célebre poema Um adeus português, por causa dessa “dor à portuguesa, tão mansa, quase vegetal”, ele me disse “faça o que quiser”, e confirmou a oferta através de um célebre texto intitulado “Génese de um poema”. Tempos delicados, esses. Neste caso não existia a necessidade de pedir qualquer autorização e, como disse, apenas por princípios de trato dirigi posteriormente à autora uma comunicação. Admito que não esperava a postura que assumiu mas sim, tenho que dizê-lo, a retribuição de igual tom. Enganei-me. Tempos ordinários, estes.
Na verdade, o “pecado” por mim cometido foi usar como inspiração uma ínfima e irrelevante parte do livro de DB, até agora desconhecido. Muito mais me inspirei nas ideias de Aquilino Ribeiro, de Roberta Katz, nas várias biografias de Fernão Mendes Pinto, nas canções de Fausto e em muitos outros textos. Esses textos e outros influenciaram a escrita do romance de DB e também o meu filme, onde, de forma diversa, ambos fomos “roubar ideias”. Leiam Fernão Mendes Pinto e encontrarão no filme a verdade do seu texto, hipóteses da sua vida trágica e nada mais. Corrijo: encontrarão Cinema, que nunca se esgotará nas histórias, nas narrativas ou na literatura. O Cinema é o modo de as filmar.
Não pretendo voltar a este tema. Mas se a isso for obrigado, por se manterem as acusações de que tenho vindo a ser alvo – com inevitáveis consequências também para a produtora “Ar de Filmes” –, eu e a produtora levaremos o assunto às instâncias judiciais devidas, onde pediremos que seja feita justiça com o ressarcimento de todos os danos, patrimoniais e não patrimoniais, que esta ilegítima situação, e concretamente a actuação de Deana Barroqueiro e de alguns jornalistas e comentadores, nos têm vindo a provocar, a nós e a todos os que nos ajudaram a fazer o filme Peregrinação.