Redes sociais: uma ameaça à democracia?
A verdadeira ameaça está na sua capacidade para oferecerem aos utilizadores exactamente aquilo que eles querem ver.
As recentes revelações sobre a utilização de dados da rede social Facebook, pela empresa Cambridge Analytica, geraram um coro de protestos unânime nos media de referência, nacionais e internacionais. Poucas vezes se viram tantas opiniões, tão esclarecidas, tão bem alinhadas e tão veementemente veiculadas, condenando a Facebook, por fornecer indevidamente dados privados dos seus utilizadores a uma outra empresa, que os usou para manipular o processo eleitoral para a presidência dos Estados Unidos, ajudando a eleger Donald Trump.
Uma análise mais cuidada do que realmente aconteceu, porém, conduz a inesperadas dificuldades na identificação de quais foram, exactamente, as acções condenáveis ou ilegais, levadas a cabo por estas empresas. Ter-se-á a Cambridge Analytica apoderado ilegalmente de dados privados dos utilizadores do Facebook? Terá o Facebook disponibilizado, indevida e ilegalmente, dados privados dos seus utilizadores, por erro ou por acção deliberada? Ou terão estas tecnologias sido usadas, indevidamente, para influenciar eleições, perturbando assim o normal funcionamento das instituições democráticas? Vejamos...
Foi referido, frequentemente, que a Cambridge Analytica explorou uma falha de segurança do Facebook e recolheu, ilegalmente, dados de dezenas de milhões de utilizadores da rede social, no que teria sido uma das maiores fugas de dados da história da Internet. Esta afirmação, porém, não resiste a uma análise mais fina. Não existiu, realmente, qualquer falha de segurança. Toda a informação usada pela Cambridge Analytica foi disponibilizada pelos utilizadores do Facebook que, ao instalarem uma aplicação específica (cerca de um quarto de milhão de vezes), deram autorização para a aplicação aceder à sua rede de contactos, atingindo assim as dezenas de milhões de utilizadores. Em 2014, quando o acesso aos dados teve lugar, esta era a configuração normal de privacidade no Facebook, e os dados dos contactos eram, por omissão, disponibilizados às aplicações que para tal solicitassem permissão. Alterações posteriores na política de privacidade do Facebook vieram alterar este estado de coisas, mas os dados foram recolhidos antes dessas alterações.
Terá o Facebook disponibilizado à Cambridge Analytica dados privados do utilizador, aos quais apenas o Facebook deveria ter acesso? Tudo indica que não. Os dados que a Cambridge Analytica usou foram recolhidos pela aplicação instalada pelos utilizadores, num processo que é em tudo semelhante ao que ocorre quando qualquer outra empresa cria e disponibiliza aplicações. O Facebook tem muitos dados privados, que não são do domínio público nem acessíveis às aplicações, mas não existe evidência que qualquer destes dados tenha sido indevidamente disponibilizado.
Será então, verdade, que não existiu qualquer atropelo da legalidade em todo este processo? Realmente, existiu, mas trata-se de uma questão mais técnica, quase de pormenor, do que de princípio. Quem disponibilizou a aplicação que foi instalada pelos utilizadores foi Aleksandr Kogan, um professor de psicologia e cognição da Universidade de Cambridge. Embora Kogan tenha respeitado os termos das regras em vigor ao adquirir os dados através da aplicação, não os poderia ter vendido a uma empresa terceira, de acordo com os termos de utilização do Facebook. Essa parte foi, de facto, ilegal. Mas não teria sido se tivesse sido a própria Cambridge Analytica a recolher os dados, nos termos das regras em vigor, algo que só por acaso não foi o que aconteceu. É, de resto, muito provável que dezenas ou centenas de empresas em todo o mundo tenham acesso a dados em tudo semelhantes aos que foram explorados pela Cambridge Analytica, como aliás foi admitido recentemente pelo Facebook. Uma vez que esta questão da venda de dados a terceiros, de facto irregular e ilegal, raramente é referida, só é possível concluir que a indignação pública resulta não dos mecanismos usados para coligir os dados, mas sim da utilização que foi dada aos mesmos: influenciar os resultados de umas eleições e, especificamente, das eleições presidenciais nos Estados Unidos.
É perfeitamente compreensível que nos sintamos indignados e ultrajados quando a utilização de uma tecnologia de marketing dirigido, potenciada pela exploração da rede social do Facebook, tenha servido para ajudar a eleger o Presidente mais incapaz de sempre da mais poderosa nação do mundo. Mas esse facto, realmente, não torna o Facebook imediatamente culpado de um comportamento condenável. A publicidade dirigida tem sido intensivamente usada em praticamente todas as eleições importantes da última década. Este mecanismo foi, apenas, particularmente eficaz. Se é verdade que Mark Zuckerberg se desculpou publicamente usando anúncios nos jornais (um método surpreendente para o criador da rede, reconheçamos), o texto da desculpa reitera essencialmente que as políticas de partilha de dados em vigor em 2014 foram entretanto alteradas.
A verdade é que o Facebook nunca escondeu que o valor dos dados que detém resulta, principalmente, do potencial que esses dados criam para fazer publicidade personalizada. É esse valor que justifica que a empresa valha centenas de milhares de milhões de dólares em bolsa. O Facebook até poderá alterar e restringir a sua política de disponibilização de dados, algo que já fez diversas vezes. Mas isso não altera o fundamental: o valor da empresa está na venda dos dados que os seus utilizadores, voluntariamente, disponibilizam, dados que podem ser usados num sem fim de aplicações, muitas das quais alheias (ou mesmo opostas) à vontade do utilizador. Mas nisto as redes sociais não são diferentes de muitas outras aplicações da Internet.
Sempre que lemos um artigo num jornal online, fazemos uma busca na web, usamos o Gmail, partilhamos fotografias, ou visualizamos vídeos no YouTube, estamos a fornecer dados que serão seguramente utilizados pelas empresas fornecedoras destes serviços para criar campanhas de vendas e outras formas de publicidade dirigida. Todos os utilizadores da Internet devem ter plena consciência disto e estar cientes da frase, já antiga, e muito anterior às redes sociais e à própria Internet: se não está a pagar pelo serviço, então não é o cliente, é o produto!
As redes sociais, tal como muitas outras tecnologias da Internet, podem representar, de facto, uma séria ameaça à democracia. Mas essa ameaça vem mais da sua capacidade para oferecerem aos utilizadores exactamente aquilo que eles querem ver, do que do facto de serem instrumentalizadas em campanhas políticas, algo que não é novo. Ao apresentarem aos utilizadores apenas as notícias que estão alinhadas com a sua visão, as redes sociais contribuem para visões enviesadas e parciais das questões, dificultando o diálogo e criando visões erradas e extremistas. Nisto, não são diferentes dos meios de comunicação tradicionais, muitos deles usados para veicular visões muito parciais das questões. São, porém, muito mais eficazes, isolando os utilizadores menos esclarecidos em bolhas quase herméticas de informação, criando a ilusão de que a sua visão é a única que existe, porque parece encontrar eco em toda a informação que lhes é apresentada. É este é o verdadeiro perigo das redes sociais, o de, manipulando informação, criarem e fomentarem fracturas profundas na sociedade e eliminarem a capacidade de diálogo!