Cultura – de novo a caminho do grau zero?
A cultura portuguesa vê-se assim, neste momento, sob a ameaça de uma prolongada indigência político-orçamental.
Governar é sempre, seja qual for a área, gerir escassez: escassez de recursos humanos, escassez de meios orçamentais.
A cultura não é excepção. A não ser por a escassez em que vive ser bem maior do que a de outros domínios e de, em alturas de aperto, ser sempre ela a primeira vítima. Daí a justa cólera dos protestos em relação à actual política cultural e, em particular, à que diz respeito ao teatro.
Ora, se há área em que os socialistas têm uma responsabilidade histórica incontornável, ela é, indubitavelmente, a da cultura. Com efeito, foi por sua iniciativa que, por três vezes (em 1983, em 1995 e em 2015), ela teve um ministério próprio. Em 1995 ela foi mesmo objecto da definição de uma estratégia global muito precisa no âmbito do XIII Governo Constitucional, bem como de políticas sectoriais bem definidas, depois sempre acompanhadas de reforço orçamental. Foi certamente por isso que o actual Governo repôs o estatuto ministerial da cultura, interrompido pela direita em 2011.
Mas uma coisa é repor o estatuto, outra é retomar uma linha de acção política que lhe corresponda. Discrepância que, contudo, já vem de longe, quando em 2005 os socialistas voltaram ao poder. Foi aí que a herança da segunda metade dos anos 90 se começou a perder.
Foi aí, como o escrevi em 2009 ao procurar contribuir para o balanço da política cultural da legislatura 2005/2009, que o Governo de José Sócrates abandonou a responsabilidade histórica que os socialistas tinham no domínio cultural, tendo preferido retomar algumas controversas (e bem esquecidas...) ideias cavaquistas, como aconteceu com o Museu dos Coches, com o Acordo Ortográfico ou com o estrangulamento orçamental das instituições, das actividades e das expectativas do mundo da cultura.
É bom lembrar que, na passagem do século, Portugal se aproximava do famoso 1% do Orçamento para a cultura. Cultura que era pensada em termos de qualificação, de crescimento, de equilíbrio territorial, de projecção internacional, etc... Cultura que foi então pela primeira vez dotada de um robusto programa próprio de financiamento de fundos europeus de cerca de 400 milhões de euros, o Programa Operacional de Cultura (POC), entretanto lamentavelmente abandonado. Cultura que havia abolido o uso ultrajante da palavra “subsídio”, substituída pelas de financiamento ou de investimento porque – como acontece na agricultura ou na educação – é disso que se trata quando se constroem bibliotecas, se recuperam teatros, se revitalizam arquivos, se intervencionam museus, se recupera o património, se apoia a criatividade nos mais diversos sectores e se projecta – o que só o futebol faz com mais impacto – o nome de Portugal no mundo.
A cultura vivia então uma dinâmica política construtiva, que só era preciso consolidar. Infelizmente, foi o contrário que aconteceu. Primeiro, ainda com as hesitações de António Guterres, apesar de tudo o único primeiro-ministro que compreendeu o alcance de uma política pública de cultura integrada numa estratégia global para o país. Depois, com a orientação socrática, que usou a cultura como instrumento de “negócios” (basta lembrar a novela com a colecção Berardo) e abriu as portas ao regresso da cultura como “flor na lapela”, óptima para burilar os discursos com umas citações de ocasião, magnífica para dar algum lustro internacional às cinzentas comitivas oficiais, mas também excelente para garrotar o sector até um indigente 0,3% do Orçamento do Estado, que foi onde as coisas ficaram em 2011.
Esperava-se por isso, com a chegada do PS de novo ao poder, em 2015, ainda por cima parlamentarmente apoiado por forças como o PCP e o BE que tudo juram pela cultura, que a sua dignificação institucional fosse acompanhada nos planos político e orçamental. Que se retomasse logo em 2016 a inspiração guterrista de uma política cultural estruturante da visão de futuro do país e do seu desenvolvimento. Que se tivesse aprendido a lição dos anos perdidos entre 2005 e 2011 e se lançasse uma ambiciosa política pública de cultura, renovando-a tendo naturalmente em conta as novas condições do país e do mundo.
Mas até agora, é preciso reconhecê-lo... nada! A cultura regressou ao seu estatuto ministerial, é certo, por onde João Soares fez uma passagem fugaz, entretanto substituído por um diplomata sempre feliz e contente com os orçamentos “possíveis”, esquecendo-se que alargar os horizontes do possível é justamente a primeira missão de um político que não se limite a pastar pelo território. E esse “possível orçamental”, que ronda agora os 200 milhões de euros, já andou – e há já cerca de 20 anos, quando ainda não havia Casa da Música, nem teatros por todo o país, nem Museu dos Coches, etc... – nos 250 milhões de euros, não havendo nenhuma razão – que não seja de opção política – para que isso não volte a acontecer.
Além disso, até ao momento não se definiu qualquer papel para a cultura na visão do Portugal do futuro. Pelo contrário. É tudo remendão, pontual e rapsódico: ora vemos o ministro identificar a querela sobre o Acordo Ortográfico a uma “guerra de religiões”, ora ouvimos o secretário de Estado reduzir a política cultural a uns obscuros “arranjos” regulamentares tipo tapa-buracos... Em ambos os casos, não posso deixar de destacar a lucidez com que Nuno Pacheco comentou aqui no PÚBLICO estes dislates...
A cultura portuguesa vê-se assim, neste momento, sob a ameaça de uma prolongada indigência político-orçamental, o que não pode deixar de representar um retrocesso de décadas, a caminho do grau zero da política cultural.
Seria boa altura de se arrepiar caminho e de se dizer o que se quer da cultura, de se explicitar bem que política cultural pública se assume realmente para o país. Depois da “resposta aberta” do primeiro-ministro ao sector, nenhuma ocasião seria mais propícia para isso do que um debate parlamentar quinzenal – até porque a cultura deve ser o único sector que, desde 1995/2000, não foi nunca objecto de qualquer debate no plenário do Parlamento.