Desculpe incomodar, estou só a cumprir a Constituição
Parece que é sempre o dinheiro, não é? A actual contestação ao modelo de apoio às artes não é apenas sobre o dinheiro. É sobre a dignidade. Sobre a dignidade de pensares num projecto artístico. De poderes fazer contratos de trabalho. E também é sobre luta
Tentar escrever sobre os acontecimentos da última semana no que às artes diz respeito em três mil caracteres revelou-se uma tarefa árdua. Quase ao nível do preenchimento da descrição de actividade ou historial da companhia, a que os processos de candidaturas a apoios tão bem nos têm treinado. Torna-se ainda mais difícil quando se percebe que é impossível escrever sobre a última semana sem falar do último ano e meio.
Porque para falar do último ano e meio é preciso falar dos quatro anos anteriores e para isso regredir até 2009, há nove anos, quando tudo agora parece um sonho, mas na verdade não o era assim tanto. Então, dá vontade de ir ainda mais atrás, num tempo em que eu ainda só fazia teatro na garagem dos meus avós, mas onde profissionais deste país (muitos deles, hoje, sem financiamento) continuavam a lutar por uma dignificação do sector, pelo fim do subfinanciamento, por uma rede de teatros municipais, pela tão ansiada descentralização.
Mas para falar disso tenho que continuar a ir atrás, atrás, aos que ainda vieram antes, aos que desbravaram caminho (homens e mulheres, esta história do teatro é feita por muitas mulheres). E no meio do trabalho que estou a desenvolver neste momento, no hoje, sobre o arquivo do Teatro Experimental do Porto (companhia não elegível, segundo os resultados provisórios) e que estreará no FITEI (festival não financiado, segundo os resultados provisórios), encontro uma carta de 1957. A carta é escrita pela então direcção do TEP (na altura única companhia profissional no Porto, uma das poucas do país), remetida ao Secretariado Nacional de Informação (SNI), dizendo que, com o financiamento que lhes está alocado, é impossível cumprir um projecto artístico de circulação, descentralização, formação, criação de novas dramaturgias, projectos experimentais, contratação de actores profissionais, etc.
Breve pausa.
Passaram sessenta anos.
Pausa.
Parece que é sempre o dinheiro, não é? Porque nunca chega. Porque os artistas não sabem cuidar dele. Porque nem sequer vou ao teatro. Porque os espectáculos deviam ser rentáveis. Porque a minha empresa também não está nada bem, e olha… Porque o fórum da TSF sobre cultura é o que tem menos inscrições para falar. Porque os meus impostos…
Longa pausa.
E não. Não é só o dinheiro. Não é só sobre o dinheiro. É sobre a dignidade, é sobre a dignidade, sabes? É sobre isso.
Respira.
Sobre a dignidade de pensares num projecto artístico. Sobre a dignidade de poderes fazer contratos de trabalho. Sobre a dignidade da avaliação. Sobre a dignidade no prazo dos resultados. É sobre a dignidade das pessoas com quem te comprometes. Sobre a dignidade do local de trabalho. Sobre a dignidade com que te lanças de corpo inteiro a um ensaio, a uma proposta de um coreógrafo, a uma candidatura, se quiseres. (Desculpa este meu tom inflamado, mas isto é sobre mim.)
É sobre a dignidade de teres um seguro de acidentes de trabalho. É sobre a dignidade de teres uma secção de cultura num jornal. É sobre a dignidade ter um Ministério, um ministro. É sobre a dignidade de poderes fazer o teatro de amanhã, e não o de hoje, e desse teatro de amanhã não resultar e de estar tudo bem. É sobre a dignidade de estares aqui há muito tempo e sobre a dignidade de teres acabado de chegar. É sobre a dignidade de aprendermos juntos. É sobre a importância da diversidade para te lembrar que vivemos numa democracia. É sobre a dignidade de — sim, já passei os três mil caracteres há muito. Já estou fora da corrida. Este texto inacabado, por dificuldade de síntese, já me tornava não elegível para um apoio.
Mas isto também é sobre desobediência. É sobre luta. É sobre acreditares que vais mudar o mundo. Isto também é sobre resistir.