Isto não vai lá com pipocas — a questão da forma concurso
Uma resposta deste tipo, construída como política inclusiva e atenta ao que está no território com potência de acção artística real, resolveria as questões colocadas pelo precário “povo dos concursos.
1. A primeira questão é a da relação entre o teatro e a democracia. Não se resolve com concursos. Se, em democracia, há dois teatros do sector público em Lisboa e Porto por decisão estatal, tem de haver uma solução do tipo teatros públicos para o resto do país. Há que definitivamente entender isso. Dizemo-lo desde Abril: os TN, no Rossio e Batalha, chegam a parte significativa da população do Porto e Lisboa (Lisboa concelho = 500.000 pessoas para um conjunto de teatros e serviços, e Porto concelho = 237.000 habitantes para um conjunto de teatro e serviços), mas ficam nove milhões de portugueses fora desse direito de “aceder à criação e fruição” do teatro nos mesmos termos que a essas estruturas é concedido praticar — a qualificação complexa e pluridisciplinar, culta e profissional, informada e banhada de referências constitutivas do que lhe é específico (e a cultura teatral tem 2500 anos e é texto, edifício, corpo, pedagogia e equipa em labor colectivo interdisciplinar, e é também história, sociologia, etc.), do objecto representação faz parte do direito de fazer e aceder.
2. Sabemos também que, mesmo na sua escala, os nacionais são suborçamentados, isto é, para o serviço de missão que têm de cumprir — que está nas leis respectivas.
3. O teatro é um pulmão democrático, Ésquilo, ou Vicente e Shakespeare, Beckett e Strehler, Brook e Régy falam-nos como nenhuns outros — o teatro e as suas invenções de forma espectacular e estruturas dramáticas têm uma potencialidade de função social concretizável com consequências de qualificação dos cidadãos única e incomparável — desta actualidade nesta actualidade com a profundidade do que não é nem comercial, nem descartável, nem epifenómeno. A forma específica da sua complexa natureza artística contém potencialidades pedagógicas e cognitivas inquestionáveis, provadas. É uma arte da presença simultânea de uns e outros, escola sem fronteiras, de nível universal e superior, para todos, uma universidade para todas as idades, para quem faz e quem vê, porque quem vê também faz, exerce um pensar em acção para si na interacção com outros que é transformador.
4. E fala-nos dos problemas reais hoje com a distância, recuo de tempo no presente, que ser contemporâneo exige, em rigor — o país tem tido uma vida cultural amputada, sofre de presentismo disfuncional, vistas curtas e projectos de nenhum alcance de tempo que, no tempo, enraízem mudanças estruturais.
5. Uma reforma estrutural será essa da cultura, de uma política cultural que nunca houve, nem há. Vivemos em regime de floresta de enganos permanente, submergimos no meio das “tantas maneiras de enganos” que o poder mediático e seus modismos “de jorna” impõem — modismo político também, com seus clientelismos e cientismos aritméticos ready-mades mais o pesadelo da inteligência algorítmica à solta em plataformas de cegueira agente, intermitente e inconstante, com vocação de trair electronicamente sem lei que a contradiga.
6. Uma resposta deste tipo, construída como política inclusiva — palavra de que António Costa gosta — e atenta ao que está no território com potência de acção artística real, resolveria as questões colocadas pelo precário “povo dos concursos”, de que faço orgulhosamente parte há 43 anos como profissional de teatro. Os concursos neste regime teriam uma função complementar e poderiam ser adequados de escala e objectivos, de meios e territórios.
7. Não esqueçamos entretanto que o país vem de uma tragédia profunda e que essas populações merecem mais que as outras e que têm necessidades culturais mais fundas do que de atendimento psicológico a la carte. A tragédia é cíclica entre nós, o que dá que pensar. Porventura também sucede com outros, mas por razão não semelhante — os nossos males são modificáveis com as tais reformas estruturais (o melhor é fazer e falar menos nelas), mas essas não são as dos economistas banqueiros, nem as dos jogadores de “offshores”, nem as dos políticos viciados em cartilhas que há muito desconhecem os reais, tão cheios de realidade estão dentro de si mesmos.
8. Infelizmente, a nossa “incapacidade” é devida em parte a uma certa “irresponsabilidade e incompetência atávicas”, não específicas deste poder mas de todos os poderes que são poderes desde Abril, em todas as esferas em que se exercem — deste ponto de vista não há grandes diferenças e onde parece que há, vistas as coisas de perto, não é bem assim: o que não há é escrutínio profundo e sério em função dos interesses dos cidadãos. E esse escrutínio estatal não seria policial, antes estímulo. O Estado, mais que o controlo e a repressão, tem a função de fazer crescer e aprofundar, refundar e reformar a democracia, única resposta às criminalidades e disfunções de todos os tipos, nomeadamente as do mercado. Essa seria a reforma estrutural das reformas estruturais.
9. As nossas questões, nossas connosco, são transversais, tocam a todos e têm muito com o que alguém chamou de “mediocracia”, democracia medíocre, sem maior alcance que fazer chover em arco estrelas de latão mal polido nos ecrãs feitos do plástico das três sílabas que Alexandre O’Neill escreveu.
10. Oh Portugal se fosses só três sílabas de plástico que era mais barato…
11. Dito isto, que fazer? Parece haver consenso para mais uma vez remendar o que vai estando. Mais tempo, menos tempo, estamos outra vez nas prorrogações e no desrespeito pela própria figura do concurso, forma mais liberal de decisão que uma resposta socialista ou social-democrata ou comunista, assumida por um poder legitimado em eleições.