Jack White: falhar o alvo com classe
O álbum de um tradicionalista empedernido a criar em modo fluxo de consciência.
Boarding House Reach começou a nascer como obra caseira. No início, era Jack White sozinho num apartamento em Nashville, acompanhado de diversos instrumentos e de um gravador de fita, companheiro do fundador dos White Stripes desde os 14 anos. A julgar por este início, seríamos tentados a pensar que White decidira fazer do seu terceiro álbum a solo uma criação crua e descarnada, do-it-yourself à antiga. Acontece que o início não foi o final.
Na ficha técnica de Boarding House Reach surgem listados dezenas de músicos de sessão que White foi convocando durante as gravações. É um álbum que tenta ser mais: mais progressista, mais exploratório, mais exigente para quem ouve, mais ambicioso — é como que viagem não guiada à psique do músico, criado enquanto a sua mente vagueava de inspiração em inspiração, sem rota definida.
Gravado entre Nashville, Nova Iorque e Chicago, mostra-nos Jack White, o responsável pelo admirável e excitante “menos é mais” em que se resumia a ética criativa dos White Stripes, em roda-livre. Gospel’n’roll iluminado por solo de Hammond (Connected by love), a extraordinária Corporation, construída sobre batida tumultuosa (a “Immigration song”, dos Led Zeppelin, a encontrar funk bem suado na pista) e que é nada mais, nada menos, que um groove rítmico irresistível ora dirigido pelo sintetizador Clavinet, ora com a guitarra a tomar a dianteira, uma “Ice station zebra” que põe linhas de piano dramáticas a pontuar versos debitados como em rap pouco canónico (Prince no horizonte), ou uma Over and over and over que é, basicamente, um riff em electrocussão (mas que riff, senhoras e senhores) a abrir caminho entre coros de musical negro e que nos relembra o portento clássico que é Jack White — e ainda há um acesso jazzy, em swing downtempo, na despedida de “Humoresque”.
Boarding House Reach é o álbum de um tradicionalista empedernido a criar em modo fluxo de consciência, é uma tapeçaria de sons pouco preocupada com o facto de as costuras estarem visíveis ou com a coerência cromático do conjunto — daí a série de curtas vinhetas sonoras de pouco mais de um minuto, como a cinematográfica Abulia and Akrasia, narrada pelo australiano C.W. Stoneking sobre piano de saloon e violino. É um álbum desconcertante — Why walk the dog, balada minimal com sintetizador e caixa de ritmos, soa a maquete que ficou por desenvolver; What’s done is done parece demonstração de uma canção country para iniciados, tragicamente minada por (nova) aparição de caixa de ritmos, neste caso vestindo a pele de penetra não convidada que deixa toda a gente na sala desconfortável. Ainda assim, acabam por ser aquelas falhas e os esquissos por concretizar, em convívio com as canções de corpo inteiro em que o toque clássico de White se mostra inspirado, que dão um charme especial ao sucessor de Blunderbuss (2012) e Lazaretto (2014).
O novo álbum a solo do Jack White que criou os White Stripes com Meg White, que conduziu depois a sua criatividade para explorar diferentes matizes rock’n’roll nos Raconteurs e nos Dead Weather, com Alisson Mosshart como vocalista, mostra-o livre na sua criatividade. O prazer que demonstra em seguir rotas inesperadas, sem receio do que dali possa nascer (e nem sempre nasce bem) acaba por tornar Boarding House Reach um dos mais curiosos momentos da sua discografia pós-White Stripes. Mesmo nos momentos em que falha o alvo tão claramente — ou precisamente por eles.