Não há pão
Isto a propósito das reações à proposta de decisão do concurso de apoio às artes da Dgartes para o Teatro, que foi recentemente revelada.
Tenho sempre sentimentos contraditórios em relação a murros na mesa. Por um lado carregam eles mesmos a contradição positiva de serem travões que fazem avançar. Por outro são “representar à espanhola”, muito efeito, muitos esgares, mas pouca substância.
Isto a propósito das reações à proposta de decisão do concurso de apoio às artes da Dgartes para o Teatro, que foi recentemente revelada.
Antes de começar aos murros a todas as mesas que por aí há talvez seja bom pensar que o concurso ainda não acabou. Que o documento disponibilizado ontem para o Teatro é uma proposta de decisão. Que a avaliação foi feita por um júri independente que foi anunciado e não foi contestado (não, o Facebook não conta). Que esta proposta ainda não contempla o (necessário) reforço anunciado no dia 20 de Março. E que ainda há dez dias para audiência de interessados em que as entidades podem solicitar justificações para os seus resultados. Sobretudo as que foram excluídas do concurso ou as que se consideram injustiçadas e que podem aqui fazer valer os seus argumentos. São estes os trâmites processuais de sistemas desta natureza.
Este modelo de apoio às artes foi pensado com contributos diversos das diferentes entidades representantes do sector. Era obviamente o mínimo que se exigia. Que essa responsabilidade fosse partilhada. O modelo encontrado (e que encontra agora nestas semanas o seu aparente Waterloo) tem falhas diversas (burocracia excessiva, linguagem pomposa e desnecessária, critérios obscuros...) e que foram sendo apontadas por diversos agentes culturais ao longo do caminho. Não são questões de somenos, mas que se afiguram como facilmente resolúveis para os próximos concursos (internacionalização, pontuais, e depois outra vez bienais…). O percurso tem mesmo de ser feito com a tutela (seja ela qual for e tenha a cor que tiver), não há volta a dar.
Neste momento importa distinguir a exigência de mais verbas da exigência de um concurso transparente. Queremos os dois. Mas comparemos “maçãs com maçãs”. É preciso saber distinguir o que são candidaturas elegíveis mas sem apoio (porque a verba não é infinita), de candidaturas não elegíveis (há muito que explicar neste ponto) e de candidaturas não admitidas. E deixemos o concurso chegar à fase de decisão final (com o reforço já incluído). E se houver de facto fortes razões para ser impugnado (que não só as emocionais), uma medida drástica e lesiva, façamo-lo.
Pedir a reformulação do sistema (partindo do pressuposto que este, que mal nasceu, de facto ruiu) é ir na direção de um modelo em que são os próprios artistas a decidir a atribuição dos apoios. Será sempre um processo moroso que precisará da disponibilidade, da implicação e (o mais difícil) da confiança de toda a classe artística. Não se fará num dia, nem num ano…
O que creio ser a responsabilidade da classe artística no dia de hoje é começar por não reagir de forma desinformada e exaltada a resultados provisórios de candidaturas que ninguém leu. Não sabemos (só mesmo pelas atas publicadas, que são na grande maioria bastante cautelosas e legalistas) como se apresentaram e como se defenderam estruturas que julgamos meritórias de apoio, mas que ao mesmo tempo não queremos que sejam apoiadas extra concurso. Como me disse um dia a Lúcia Sigalho: não há retrocesso. Nunca mais voltaremos ao tempo em o estado apoiava um número reduzido de entidades eleitas (algumas delas ainda em atividade, algumas delas agora provisoriamente, e para perplexidade de alguns, excluídas do apoio) por razões que eram misteriosas e que alguns agora parecem querer ver ressurgir. O fantasma dos “intocáveis”. Não há mesmo retrocesso querida Lúcia.
Não nos calemos porém. As ilações negativas são assinaláveis (no Teatro desaparecem os apoios em Coimbra e em Setúbal, desaparecem festivais importantes no Porto, desaparecem muitas mulheres, que já eram pouquíssimas: a Casa Conveniente, o “meu” Cão Solteiro) e carecem de justificação apropriada (e vamos exigi-la, individualmente e/ou concertadamente, dependendo da natureza da exigência). Mas também é preciso saber ler a evolução: que há mais estruturas apoiadas, que há um ênfase muito claro na melhoria das condições de empregabilidade, que há novas estruturas no panorama nacional que veem o seu percurso reconhecido, que se alargaram os apoios às regiões autónomas, que há casos de justiça elementar como o apoio na Dança ao Dançando com a Diferença, que há estruturas que ascendem a um patamar que as afasta um pouco mais da precariedade em que sempre viveram e as aproximam da exigência da responsabilidade social e artística que têm ocupado (sim, estou a falar da minha).
E depois há as coisas que se mantêm. No Teatro as companhias mais apoiadas continuam a ser as mesmas do concurso anterior (todas de Lisboa): a Companhia de Teatro de Almada, os Artistas Unidos e O Bando.
Posto isto é natural que os ânimos se exaltem (ainda que não se ouçam propostas concretas de mudança e nas últimas horas tenha lido sobretudo muitos pontos de exclamação e letras maiúsculas que compõem chavões como respeito, rigor e mudança. São bonitos mas precisam de reflexão).
É preciso muita reflexão sim, e alguns murros na mesa. Mas é preciso clareza. E conhecimento de causa. E não confundir alhos com bugalhos. E não dar ouvidos aos incendiários do Facebook, que são quase sempre uns tipos que nunca conheceram outra coisa que não o trono e o privilégio.
Os insultos ao júri, aos responsáveis da Dgartes e até à tutela são auto-insultos. Não vale a pena cuspir para o ar, são todos pessoas que fazem parte de uma mesma (e pequeníssima) comunidade. Acabaram-se as Castas, somos todos parte do problema.
É preciso corrigir as assimetrias. As que já existem e as que este concurso, inevitavelmente, criará. É preciso saber como é que as autarquias se podem responsabilizar mais pelos projetos que têm importância local mas taxas de dependência da Dgartes demasiado elevadas (para o valor que a Dgartes disponibiliza claro).
De quanto precisamos? Sabemos? Não. Mas saibamos dar o murro certo na mesa certa. E exigir o tal “Godot” a que também se costuma chamar de 1% do Orçamento do Estado. Ele é nosso.
Actor e encenador do Teatro Praga.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico