Como falhou, até ver, o projecto de governo entre a Liga e o Cinco Estrelas

A situação política italiana permanece no impasse. Todas as maiorias parecem inviáveis. Será necessária muita imaginação, e talvez muito tempo, para encontrar um desfecho positivo.

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Mural em Roma com um beijo entre Luigi di Maio, da Cinco Estrelas, e Matteo Salvini, da Liga Tony Gentile/REUTERS

A Itália continua longe, muito longe, de ter uma perspectiva de governo. Durante o fim-de-semana, reinou a convicção de que estava aberto o caminho para um governo de coligação entre o Movimento 5 Estrelas, de Luigi di Maio, e a Liga, de Matteo Salvini, a “coligação de extremos”. Três dias depois, o caldo está entornado. O idílio entre Di Maio e Salvini rapidamente se transformou em azeda disputa. Ninguém deve dar nada por adquirido na política italiana antes de ver um governo tomar posse.

A convicção da proximidade da aliança decorreu do facto de Salvini e Di Maio terem realizado uma “obra-prima”, na melhor tradição da política à italiana, na eleição dos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados. Salvini encostou Berlusconi à parede, demonstrando que era ele o líder da aliança do centro-direita, mas salvou-lhe a face.

E Di Maio, bem concertado com Salvini, manobrou com uma até agora desconhecida perícia parlamentar. Resolveram um quebra-cabeças. “O que era inaceitável tornou-se possível”, resumiu o Huffington Post italiano. E Beppe Grillo deu a sua bênção ao adversário: “Matteo Salvini honra a sua palavra, o que é uma coisa rara.” Mas só a férrea disciplina do M5S fez engolir aos militantes o “sapo” que a imprensa baptizou como “Grillusconi”.

O esquema imaginado assentava na hipótese de compromissos mútuos. O M5S não poderia cumprir a sua promessa do “rendimento de cidadania”, mas apenas um esquema menos ambicioso. A Liga não poderia impor a Flat tax e a redução de impostos seria simbólica. Mas poderiam acordar algumas medidas, desde a abolição da reforma vitalícia dos parlamentares a uma nova lei eleitoral.

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Luigi di Maio, do M5S: o seu partido corre o risco de abrir uma crise entre os adeptos se fizer um governo em que participe a Forza Itália, de Berlusconi

Depois disto, voltariam a ser adversários numa reinvenção do bipolarismo. Sugeriu o jornalista Alessandro de Angelis: “Se antes [o bipolarismo] era entre esquerda e direita, o projecto é um sistema bipolar Salvini-Di Maio, sobre os despojos da Força Itália e do Partido Democrático”.

Fim de idílio

O idílio durou três dias. Deu lugar a um confronto entre os dois rivais, que têm estratégias e interesses contraditórios. O M5S e a Liga têm pontos em comum e, daí, a convicção da proximidade de um entendimento. Por outro lado, a soma dos seus deputados garante a maioria absoluta. Mas Salvini não pode romper a aliança com a Força Itália (FI), de Berlusconi. E o M5S corre o risco de abrir uma crise entre os adeptos se fizer um governo em que participe a FI. E, para Berlusconi, é vital estar dentro do governo, para defender as suas empresas, sobretudo o audiovisual, contra as ameaças do M5S.

Na terça-feira, tudo voltou à estaca zero. O deputado grillino Alfonso Bonafede declarou: “Não estamos disponíveis para nenhum executivo sem Di Maio como primeiro-ministro.” Salvini respondeu: “Se Di Maio diz ‘eu ou ninguém’ engana-se, porque hoje não há ninguém.” Na origem do desentendimento está o nome incómodo de Berlusconi.

Matteo Salvini

O acordo forçado na semana passada entre o M5S e o Cavaliere, mediado por Salvini, é quase impossível de repetir. O que foi possível na eleição dos presidentes parlamentares não pode ser repetido. Frisa o politólogo Roberto D’Alimonte: “O que para o Movimento [5 Estrelas] não seria digerível é um acordo sobre o governo com Berlusconi. Talvez Di Maio e Salvini pudessem encontrar uma fórmula para estarem juntos num ménage a dois, mas não a três. Tudo é possível menos um governo Di Maio-Salvini-Berlusconi.”

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Salvini encostou Berlusconi à parede, mostrando que liderava a aliança da direita, mas salvou-lhe a face MASSIMO PERCOSSI/EPA

Salvini quer apresentar-se nas negociações sobre o governo como “accionista de referência de uma coligação que tem maioria relativa na Câmara e no Senado” e não como simples chefe da Liga. Por outro lado, uma ruptura com a FI provocaria um terramoto nas regiões que ambos governam em aliança. “É a matemática da política italiana”, diz D’Alimonte. “Por isso, Berlusconi e Salvini continuarão a litigar mas não romperão.” E se Salvini visa lançar uma “OPA amigável” sobre o eleitorado da FI, unificando a longo prazo o centro-direita sob a sua direcção, não lhe convém precipitar a ruptura. Berlusconi está velho mas detém uma pesada máquina de poder.

Luigi Di Maio

Se para haver governo é precisa uma maioria — o Presidente Sergio Mattarella não aceitará executivos minoritários ou transitórios — a matemática parlamentar também indica que tal maioria exige o apoio da coligação de Salvini-Berlusconi ou do M5S.

O M5S considera ter uma estratégia vitoriosa. Diz ao Il Fatto Quotidiano um dos dirigentes: “A nossa força é sermos o fiel da balança: podemos andar para um lado ou para o outro, conforme prefiramos e ditar as nossas condições. Movimentamo-nos em duas frentes. (...) O esquema é podermo-nos mover livremente. Ao contrário do centro-direita, somos compactos, e o Presidente Mattarella não poderá ignorar isto.”

Ou seja, escolher entre a Liga e o Partido Democrático. Mas são soluções incertas. O PD está dividido e o ex-secretário Matteo Renzi, que ainda domina a maioria da bancada parlamentar, opõe-se radicalmente a quaisquer acordos com o M5S.

Sobre a aliança com a Liga, observou Marco Travaglio, director do Il Fatto e próximo do Movimento: “Se fizerem um governo com a Liga, os Cinco Estrelas correm o risco de ser linchados. Di Maio acabaria a ter de andar com uma escolta.”

O veterano centrista Pier Ferdinando Casini comentou assim o acordo da semana passada: “Este caso mostra que há um cordão que une [a Liga e o M5S], portanto esperamos um belo governo presidido por um qualquer ex-presidente do Tribunal Constitucional. E Berlusconi lá estará, porque tem de estar.” Quer isto dizer que ainda a procissão vai no adro.

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