A política externa da pastilha elástica
Neste recrudescer da tensão entre a Europa e a Rússia ou se está ao lado dos nossos aliados, ou não está.
Uma maioria muito significativa dos países da União Europeia fez prova da lealdade ao que resta do espírito do Ocidente e decidiu expulsar diplomatas russos das suas capitais. O Governo de Portugal assobiou para o lado e, ao exibir assim de forma tão crua o seu isolamento, acabou por revelar uma vez mais a sua devoção à política chiclete. O Governo que teima em explicar parcialmente o que aconteceu no Verão do ano passado com o clima ou com a irresponsabilidade da Comunicação Social é o mesmo que mostra falta de nervo para condenar sem equívocos o homicídio de um ex-espião russo em Londres. Um Governo que culpa o laxismo do passado para justificar o que aconteceu em Tancos é o mesmo que mostra défice de energia e frontalidade para se pôr ao lado do seu mais velho aliado. O Governo que diz ter virado a página da austeridade ao mesmo tempo que eleva a carga fiscal sobre os portugueses para níveis inauditos é o mesmo que se dilui na neutralidade demissionária que tolera a ingerência do regime de Vladimir Putin nos assuntos da Europa ou dos Estados Unidos.
O Governo vai por aí porque é da sua convicção profunda que a política não dispensa a arte de dissimular nem o jeito para se estar bem com Deus e com o diabo. Essa arte e esse jeito podem ter feito bem ao país, ao permitir uma transição suave dos anos de chumbo da troika. Mas essa plasticidade que leva António Costa e os seus pares a apaziguar com a mão esquerda o Bloco e o PCP ao mesmo tempo que aplica com a outra mão uma política fiscal que obedece à ortodoxia da direita chega a momentos em que sai da esfera da utilidade e cai na incoerência, no vazio feito de deixar andar e na artimanha. A abdicação de uma posição inequívoca perante a Rússia é feita dessa relutância manhosa que consiste em evitar tudo e qualquer coisa que exija determinação e frontalidade.
António Costa, bem se sabe, é um capitão sábio na escolha de rotas para águas tranquilas, que faz tudo o que está ao seu alcance para evitar ondas e salvar o barco de qualquer sinal que prenuncie a mais leve tempestade. O seu génio permitiu-lhe o controlo (até à data, pelo menos) da agenda da esquerda mais extrema e deu-lhe condições para aplacar os desejos oposicionistas do seu maior adversário à direita. Ele é um sempre-em-pé que resiste a tudo porque sabe contornar tudo o que seja difícil de gerir. Mas, se a “acalmação”, como outrora se dizia na política portuguesa, é um bem que trouxe confiança e garantiu uma notável estabilidade, o que agora está em causa na sua falta de solidariedade com os seus parceiros e aliados chega ao limiar da renúncia. Uma coisa é saber durar cá dentro fazendo equilibrismo entre as palavras da esquerda e as políticas do centro; outra, muito diferente, é pretender manter uma atitude dúplice nos negócios estrangeiros.
Há momentos na vida em que renunciar não é apenas desistir. É também fazer o jogo de terceiros. António Costa e o seu ministro Augusto Santos Silva podem até acreditar que o melhor mesmo para Portugal é estabelecer que a guerra de nervos diplomática em curso entre a Europa, os Estados Unidos e a Rússia não é nada connosco. Mas a verdade é que também não é nada que diga directamente respeito aos 26 países que se colocaram ao lado do Reino Unido na prova de força que Londres decidiu abrir com Moscovo. O Governo pode muito bem dar como boas as teses do Bloco, segundo as quais não há provas inequívocas de que o assassinato do espião foi executado a mando da Rússia. Mas, que se saiba, nem o Bloco nem o Palácio das Necessidades têm mais informações do que a diplomacia da Albânia ou da Lituânia para justificar a sua omissão com essa suspeita.
O que está em causa é de uma meridiana clareza que não deixa margem alguma para zonas cinzentas: neste recrudescer da tensão entre a Europa e a Rússia ou se está ao lado dos nossos aliados, ou não está. Depois da Crimeia, do mais que provável envolvimento no referendo catalão, das eleições de Itália ou do envenenamento de Sergei Skripal, ou o Ocidente faz prova de vida e mostra união, ou arrisca-se a cair numa política de apaziguamento que, diz-nos a História, só funciona com potências dispostas a dar sinais de empenho na diplomacia como via para a resolução de conflitos. Querer decidir “sem precipitação, com autonomia, com prudência, mas também com firmeza”, como reclamou o ministro Augusto Santos Silva, era possível (e desejável) numa situação bilateral. Numa tomada de posição internacional, é argumento de pouca monta. Ou será que a Espanha e a Itália se precipitaram e não foram autónomas nem prudentes quando, de forma concertada com 24 países, optaram por se juntar à causa britânica?
Ao deixar-se assim praticamente isolado na União Europeia, o Governo expõe o país ao olhar suspeitoso e crítico dos seus parceiros. “Dar boa conta” da decisão de duas dezenas de países que optaram por expulsar diplomatas russos e delegar na União Europeia a escolha de um caminho a seguir no futuro próximo é mais um sinal de obediência ao culto da ambiguidade e à fuga aos problemas mais esquinados que é uma das principais marcas de água deste Governo — até porque a Cimeira Europeia da semana passada abordou a questão. Pode funcionar para consumo interno e certamente dará argumentos ao Bloco e ao PCP para poderem celebrar as qualidades de uma diplomacia que bate o pé às potências capitalistas, sempre empenhadas em aniquilar a soberania da Rússia. Mas cria uma inadmissível teia de suspeitas sobre a lealdade de Portugal com os seus parceiros. Deixa no ar a insuportável imagem de um país ingrato, que andou a pedir ajuda à Europa quando esteve na iminência da bancarrota para logo depois tergiversar sobre os seus deveres de lealdade quando foi importante para a Europa mostrar-se unida.
Defender uma pose moderada que faz pontes entre a esquerda e a direita, que garante a estabilidade do país num período crítico, pode justificar essa submissão a uma política chiclete que é uma coisa nas palavras e outra nos actos, que é vermelha nos propósitos e verde na concretização. No plano externo, essa plasticidade que quer ser tudo, não sendo nem uma coisa nem outra, implica outra avaliação e outra responsabilidade. Ficar de fora do apoio ao Reino Unido e do grosso da coluna da Europa, ficando orgulhosamente só a pensar em eventuais ganhos na exportação para a Rússia, não é bom para ninguém. Não o é para a Rússia, que deve ser chamada a fazer parte da família europeia à qual pertence. Não o é seguramente para Portugal, que se arrisca nesta sua demissão a fazer o papel do pequenote empertigado e embirrento, ao qual mais tarde ou mais cedo será boa ideia dar um raspanete. Como escreveu David Dinis no editorial desta terça-feira, “se queremos ser relevantes, talvez fosse bom começar por aqui”. Não começámos, mas ainda há tempo para evitar o pior.