Um grito de alerta por Calais

Artista francês de origem portuguesa, Jérémy Pajeanc foi o primeiro residente do projecto No Entulho. Aproveitou a oportunidade para chamar a atenção para o drama dos imigrantes que querem passar a fronteira de França para a Inglaterra.

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Jérémy Pajeanc no estaleiro da Otiima Artworks Nelson Garrido
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Há vitrinas, janelas, caixas de alumínio e de madeira, todas elas com palavras-de-ordem gravadas a ácido e gritando a urgência do tema das migrações e dos refugiados: “La frontière tuée”/ “Jeu de vie; Lieu de vie; Nous ne sommes pas des animaux”/ “Stop the blood”/ “We just want to go in England”…

Há inscrições em francês e em inglês. Há roupas e objectos acumulados nestas montras que denunciam o desespero de quantos, nos acampamentos (agora) escondidos de Calais, no norte de França a caminho de Inglaterra via Eurotunel, desesperam por um “passaporte” para uma vida diferente na Europa do Norte de todas as ilusões.

Com Sans toi ni loi – o mesmo título de um filme de Agnès Varda (Sei Eira nem Beira, 1985), em que Sandrine Bonnaire incarna uma adolescente lançada para a berma da estrada da vida –, Jérémy Pajeanc encena o drama dos imigrantes e dos refugiados que, fugindo da África de todos as guerras (mas também de países como o Vietname, o Tibete ou as Filipinas), aspiram a chegar a Inglaterra.

“São frases, grafitti, que eu fui recolhendo nas tendas, nas estradas, nas estações de serviço, a caminho de Calais”, explica o artista luso-descendente nascido em Paris (1988), e que se encontra radicado em Portugal desde 2007, onde se licenciou na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Decidiu gravar estas inscrições a ácido hidrofluorídrico sobre vidro para que elas não tenham o destino dos grafitti em Calais, que as autoridades francesas limpam diariamente para esconderem uma realidade com a qual não se querem confrontar.

“Eu também sou imigrante, sempre fui, como a minha família; mas, como nasci em Paris, tenho a sorte de poder viajar para todo o lado; já os imigrantes não o podem fazer”, nota Pajeanc, descendente de portugueses, primeiro, emigrados para Angola, e depois da guerra civil neste país, para França.

O artista vem trabalhando o tema genérico das migrações e o drama de Calais desde há meia dúzia de anos, quando em 2012 fez uma primeira instalação, Grades antimotim, na Dinamarca, no âmbito do European Glass Contest. “Decidi agora ser mais incisivo e mais específico sobre o caso de Calais”, realça, lamentando que o seu país não consiga "dar resposta a esta questão humanitária”. “No futuro, a Europa vai ter de responder pelos actos inumanos que agora está a praticar junto dos imigrantes que a procuram”, reclama.

Operários-artistas

Jérémy Pajeanc é o primeiro convidado de No Entulho, o programa de residências artísticas que a Otiima abriu no início deste ano, destinado a proporcionar aos jovens artistas “a pesquisa e a produção artística em ambiente rural-industrial”.

O artista francês fez uma residência na fábrica da Póvoa em Janeiro e Fevereiro, tendo inaugurado a sua instalação, em três espaços da Otiima, no dia 9 de Março.

Para a concretização de Sans toi ni loi, Pajeanc pôde contar com a cumplicidade dos operários da fábrica. “Quis ir além da simples encomenda prática – ‘Preciso de um ferro de x por y’ –, e pedi-lhes colaboração activa. De início, eles estranharam, porque não é muito vulgar, mesmo quando vêm artistas, eles serem envolvidos na parte temática”, diz. Acabou por contar com o apoio directo de alguns deles, que perceberam e se deixaram envolver mesmo com a causa do projecto – de tal modo que uma das peças, Mortelle transparence, foi co-assinada com Duarte Campos e João Silva.

Sans toi ni loi vai ficar exposta até ao final de Março, regressando no fim do ano, em Dezembro, para quando a Otiima tem agendada uma mostra de todos os trabalhos que forem feitos ao longo de 2018.

Aquando da visita do PÚBLICO, havia já dois novos artistas a começar a sua residência: Tiago Madaleno (Vila Nova de Gaia, 1992), vencedor do Prémio Novo Banco – Revelação 2017; e o chileno Rafael Yaluff (Santiago do Chile, 1983). Este veio agora a Portugal pela primeira vez, a convite directo de José Miguel Pinto, que encontrou no seu país há quatro anos. “Conheci-o, por acaso, em Santiago do Chile; trata-se de um nome já com algum peso na cena artística do Chile, e também em Toronto, onde também já trabalhou”, diz o director do Artworks.

Ao PÚBLICO, Yaluff, que tinha chegado à Póvoa há apenas alguns dias, disse que irá trabalhar num projecto de pintura experimental. “Vou desenvolver ideias antigas, mas que até agora não tinha conseguido trabalhar, por falta de espaço e de meios. Aqui vou ter o tempo e o espaço suficiente para avançar”.

Já Tiago Madaleno não quis avançar muito sobre o seu trabalho. “Vou retomar um projecto pessoal de construção de um monumento, uma estrutura móvel para instalar no espaço público. Mas é ainda cedo para dizer coisas mais claras sobre isso”.

Seguir-se-ão, no calendário de No Entulho, Igor Jesus (Maio/Junho), João Pedro Trindade (Julho/Setembro) e Francisca Carvalho (Outubro/Novembro). No final do ano, ver-se-á que arte saiu do “entulho”.

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