“Daqui a cinquenta anos falaremos da família tradicional como falamos hoje de tribos desaparecidas”

A ruptura do modelo tradicional de família, da sua funcionalidade, continua a servir de motivo a Valério Romão: Cair Para Dentro

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miguel manso

Valério Romão (n. 1974) estreou-se na literatura com o romance Autismo (Abysmo, 2012) – um livro “com uma forte componente biográfica”, confessou ao Ípsilon, sobre um casal que não consegue comunicar com o filho por este ser autista e não falar. Seguiu-se o romance O da Joana (2013), sobre uma gravidez que corre mal – um parto prematuro de um nado morto – a um casal que há oito anos desejava ter um filho. Agora, Cair Para Dentro vem fechar o ciclo romanesco (trilogia) a que o autor chamou “paternidades falhadas”. De notar, ainda, que em 2014 publicou a colectânea de contos Da Família (2014), história “familiares” que decorrem em famílias disfuncionais, ou pelo menos em ruptura com um aparente “modelo tradicional”. A família surge assim como uma espécie de epicentro de todos os abalos no terreno doméstico, esse ringue de silêncios pactuados e de lutas mudas – um território difícil de habitar mas a que se sabe poder quase sempre voltar, o que de uma forma ou de outra, acaba por confortar e também proteger.

Mais do que procurar respostas, a escrita e o desenvolvimento narrativo nestes três romances acabam a interrogar o leitor, atirando-o para um terreno bastante movediço. A família parece estar a um passo, como talvez nunca estivesse estado antes, de ser profundamente redefinida. “Quando daqui a 50 anos falarmos de família, falaremos da ‘família tradicional’ como falamos hoje de algumas tribos desaparecidas”, diz Valério Romão. “Julgo que não a ultrapassamos por compreendê-la em pleno ou por ter esgotado o seu sentido, mas porque os múltiplos modos de vida que se podem agora viver na plenitude a reclamaram para a dinamitar. Estamos num período muito confuso em que a única verdade admissível parece ser a negação incondicional do passado e das suas categorias. E isso não corresponde a um esgotamento ou a uma deficiência dos modelos que nos regiam, mas a uma decisão de negar tudo quanto não soe a futuro.”

O título da trilogia, “paternidades falhadas”, pode indiciar um falhanço, no seu sentido literal, mas não é disso que se trata (com reservas para este mais recente romance, mas lá iremos mais adiante). Mais do que um “falhanço” há nestas relações familiares um não cumprimento relacional por motivos exteriores à vontade – sobretudo nos dois primeiros livros. Romão vai aos poucos tentando dissecar, em gestos quase cirúrgicos de escrita, um corpo familiar que parece ter entrado em falência por interrupção funcional de alguns orgãos. A progressão lenta da narrativa (apesar do ritmo acelerado da escrita – muito à maneira de Lobo Antunes) vai permitindo que se tornem visíveis os estragos causados, o que deixou de trabalhar, o que foi truncado, o que é que já se tornou num apêndice disfuncional que o corpo tem de carregar como um peso morto: aquilo que se arrasta numa vida que parece desgastar-se ao ritmo da escrita.

“À medida que ia escrevendo o livro ia pensando na possibilidade de sermos muitas identidades numa e, nalguns casos, existirem identidades truncadas que, de algum modo, e dada a sua incompletude, acabam por pesar-nos sem que correspondam a qualquer ganho funcional”, acrescenta. “Isto é especialmente verdade no caso da maternidade / paternidade. Quando o teu filho ou filha não te chega nunca a chamar pai, é como se o processo pelo qual a linguagem valida uma realidade tivesse entrado em curto-circuito. Como um casamento deixado a meio, uma cerimónia incompleta. Sabemos o valor das palavras e não dizemos ‘amo-te’ à toa. Ou, dizendo-o, sabemos que é à toa. No caso da identidade de pai ou de mãe, uma das mais complexas e recorrentes do humano, quis explorar as formas de interrupção dessa identidade e como esses curto-circuitos condicionam de forma transversal as restantes identidades que somos. Pais que nunca foram chamados tal, um nado-morto que era a esperança de completude da sua mãe, ou uma filha que tem de se tornar mãe quando nem sequer se tornou adulta ainda.”

Em Cair Para Dentro é deste último exemplo que o autor trata: da relação desequilibrada entre uma mãe e uma filha. A narrativa percorre décadas de vida de ambas, sendo a história contada pelas duas vozes – que ora alternam ora se misturam no mesmo discurso. A mãe foi abandonada pelo pai deixando-lhe este a menina – que se torna no alvo das acusações de culpa pelo desaparecimento do homem, pois este queria que tivesse nascido um menino (anos depois, quando voltam a ter notícias dele, é pai de dois rapazes): “Soube que tinha ido para Setúbal, que tinha deixado de beber graças aos serviços de uma daquelas igrejas brasileiras nas quais a bondade de deus é convertida num imposto sobre o rendimento a colectar mensalmente, soube também que se tinha juntado com uma mulher quase da idade dele, e que ela lhe dera dois filhos homens, como ele sempre havia querido, e que um deles, muito pequeno ainda, já desmontava e voltava a montar tudo quanto tivesse parafusos (…).” A filha acaba por não conhecer o amor, o único modelo que conhece é o da sua conturbada relação com a mãe – senhora que acaba por ter alguma posição de destaque social ao tornar-se presidente da Junta de Freguesia (este pormenor não é dispiciendo, porque de alguma forma vem sublinhar que o seu modo de ser mãe não é resultado de desconhecimento mas de uma escolha consciente). Aquela relação torna-se, assim, para a filha no modelo do amor. Não conhecendo outra forma, e sofrendo com aquela relação, “dá-se de algum modo um curto-circuito entre prazer e dor: se isto é amor e me dói, então aquilo que dói deve ser amor. E as coisas ficam deveras confusas e disfuncionais”, esclarece Valério Romão. A relação entre ambas assemelha-se muito a um modelo sado-masoquista, em que a mãe sabe ser o verdugo mas a vítima desconhece outro mundo.

Doença de Alzheimer

A doença da mãe vem introduzir na relação um inverter de papéis: a filha vai ter que se tornar “mãe” da mãe. Mas ela, apesar da idade, de ter feito um curso universitário e de ser professora, nunca foi deixada crescer, não sabe o que é a independência, a mãe nunca a deixou crescer, de certa maneira propositada para que não perdesse a filha como perdera o marido; viveram sempre as duas juntas, dormiam na mesma cama, e todos os movimentos da filha era controlados ao pormenor, não estando a filha autorizada, por exemplo, a ter um telemóvel pois essa seria uma oportunidade de escapar ao controlo doentio da mãe: “e ela, olhos no chão como aqueles cães aos quais sobra em culpa o que falta em juízo: tem alguma coisa a dizer em sua defesa, Eugénia, e ela, sem soltar o lastro das pupilas, talvez um telemóvel ajudasse, mãe, assim podia ligar-lhe quando fosse necessário, para a mãe não ficar em cuidados, há uns muito baratos, como já lhe disse, um telemóvel, Eugénia, lembra-se do que aconteceu da última vez que me convenceu a deixá-la comprar um aparelho desses, lembra-se, e ela, metro e setenta de mulher mirrando tristonha sob os meus olhos, lembro-me, mãe, lembro-me.”

A doença de que a mãe entretanto começa a padecer, com o seu consequente apagar de memórias e confusão demencial, também atravessa e se reflecte na estrutura do livro, no seu modo quase aleatório de caminhos por onde a narrativa evolui. Dessa forma as memórias, o texto narrado, vai aparecendo solto no tempo, com capítulos por vezes curtos, com uma escrita que parece andar à procura do que ficou lá para trás, que se enrola e desenrola sobre si própria como se procurasse uma ponta que sirva para atar a outra e assim ter um fio a partir do qual se possa tornar a tecer a vida como ela foi. “Tento sempre que a estrutura reflicta de alguma forma o livro. Neste, as imagens através das quais imaginava o livro tinham sempre alguma coisa de insular e de movediço. Uma espécie de arquipélago variável ou um campo de dunas”, confirma Valério Romão. “Pensei numa estrutura em que a composição fosse parecida à dificuldade que um doente de Alzheimer tem relativamente à memória: recupera não aquilo que quer, mas aquilo que pode. Parece haver sempre uma ambiguidade latente nas coisas recuperadas, como se estas pertencessem a outra pessoa ou a outra fase da sua vida. Não podia, obviamente, ser “alzheimeriano” tal e qual, sob pena de comprometer o sentido da narrativa. Mas tentei aproximar-me tanto quanto possível disso.”

Escrevi no início deste texto que este romance talvez fosse (de entre os três que compõem “paternidades falhadas”) aquele em que o “falhar” se aproxima mais da ideia de escolha, de agir por livre vontade, não tendo os condicionamentos mais radicais a que o destino, ou o acaso, obriga a vida. No entanto, apesar do comportamento da mãe encontrar alguma justificação na situação de abandono em que o marido a deixou, houve uma actuação deliberada e continuada da mãe sobre a filha – o mesmo não acontece nos outros dois livros, em que a paternidade é interrompida por algo que não está na vontade dos protagonistas.

Valério Romão demorou quatro anos a escrever este livro, sobretudo, confessou, porque “foi muito complicado adoptar uma escrita de capítulos curtos, de muitas ideias, de situações diferentes.” E esclarece: “Eu gosto da profundidade e da demora nos assuntos. Este livro obrigou-me a ser mais sintético do que estava habituado a ser. Também por isso foi o livro que demorei mais tempo a concluir. Serviu-me de lição, dificilmente volto a este formato.” Sobre o seu método de escrita, Romão confessa não o ter, para além disso não usa blocos de notas para anotar ideias em situações mais corriqueiras. E diz ainda que quando começa a escrever que não conhece a história nem tem ideia do aspecto das personagens. “No fundo, acho que vou descobrindo, como o leitor. O que me dá muito prazer, não o nego. Seria incapaz de começar a escrever um livro se já soubesse como acabava. Para mim, seria um spoiler absolutamente desmotivador. Mas tenho inveja de quem tem essa capacidade. Parecem-me sempre muito mais cientes do mister do que eu.”

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