O Arquiteto e a Sociedade
Torna-se assim urgente clarificar qual a mensagem que o Governo e a Assembleia da República pretendem transmitir às escolas de Arquitetura e de Engenharia sobre o papel social que esperam delas para que o direito à Educação e à Profissão não seja defraudado pelo órgão máximo do país.
A profissão de Arquiteto é uma das mais antigas da nossa civilização contribuindo com a sua reflexão e ação para dar forma e organizar o espaço das nossas cidades, mas também do nosso território, hoje profundamente humanizado. Tal como outras profissões, o seu grande objetivo tem sido desde tempos ancestrais dar resposta às necessidades humanas, nomeadamente à construção de espaços para as suas múltiplas atividades, desde o habitar ao trabalhar ou ao lazer.
Desde muito cedo, o Arquiteto fundou a sua ação em três pilares – beleza, construção e função – dando corpo às três dimensões propostas no século I a.c. pelo arquiteto romano Vitrúvio – venustas, firmitas e utilitas. Trata-se, no fundo, de assumir com a sociedade uma responsabilidade social, através de uma resposta imediata a um problema funcional e técnico, que não deixa de contribuir para a qualidade da vida humana, através da beleza ou do conforto. Assim, são estas três dimensões que têm construído o património material, hoje tão valorizado não só cultural como também economicamente.
Em Portugal, o Arquiteto compreendeu, desde cedo, que a sua formação constituía um fator preponderante no sucesso deste compromisso com a sociedade. Assim, a formação pela experiência nos estaleiros das obras com os mestres passa, a partir de 1500, para uma formação teórico-prática em instituições dedicadas ao ensino da Arquitetura, constituindo, desde então, uma das fundações da sociedade moderna.
Estas instituições foram-se transformando e conquistando um papel cada vez mais reconhecido pela sociedade, designadamente com a criação das Academias de Belas-Artes, em 1836, onde se promovia a colaboração da Arquitetura com a Pintura e a Escultura, situação que perdurou até à conquista de um estatuto universitário com a criação das Faculdades de Arquitetura no Porto e em Lisboa em 1979, em pleno processo de democratização da sociedade portuguesa e consequente afirmação da sua condição europeia.
A entrada no sistema universitário era, não apenas uma exigência dos professores de Arquitetura das então denominadas Escolas Superiores de Belas-Artes e dos Arquitetos representados pela Associação dos Arquitetos Portugueses (AAP), mas também uma necessidade da própria universidade portuguesa em integrar uma disciplina que estava em diálogo com todas as áreas científicas, desde as ciências exatas às ciências sociais e humanas.
Podemos igualmente afirmar que o reconhecimento internacional das duas escolas de Arquitetura do Porto e de Lisboa era também um fator de atração para as universidades que estavam a sofrer um processo de reforma em torno da sua afirmação nacional e internacional. É assim que se criam sucessivamente os cursos de Arquitetura nas universidades, de Coimbra, do Minho, de Évora e da Beira Interior, nos institutos universitários, do Técnico e do ISCTE, e ainda nas universidades privadas. Era uma exigência da sociedade e dos nossos jovens que procuravam uma formação superior.
É deste modo que a criação de novos cursos de Arquitetura acompanha o processo rápido de crescimento e desenvolvimento da sociedade portuguesa na década de 80 e 90 do século passado, onde o Arquiteto e a Arquiteta conquistam com a sua ação um lugar inquestionável de prestígio junto de todos os sectores da sociedade que se torna também evidente com a passagem da AAP a Ordem dos Arquitetos, em 1998. Assim, a formação e a profissão andaram sempre de mãos dadas neste longo percurso de afirmação e reconhecimento pela sociedade.
Contudo, esta perspectiva otimista é também resultante de muitas lutas e de muitos retrocessos. O mais recente teve lugar, na passada semana, na Casa da Democracia quando alguns dos nossos deputados ignoraram esta história e desvalorizaram de uma só vez uma classe profissional e uma formação universitária. E é por isso que, mais uma vez, estudantes, Arquitetos e Arquitetas se uniram para manifestar o seu repúdio pela aprovação de leis que põem em causa o seu trabalho académico e profissional na qualificação das nossas cidades, do nosso território, do nosso património.
No entanto, este ato legislativo não é apenas contra estas duas instituições da nossa sociedade democrática – as escolas de Arquitetura e a Ordem dos Arquitetos – ele é também contra as escolas de Engenharia e a Ordem dos Engenheiros que vêem a sua ação confundida e descredibilizada ao serem-lhes conferidos desígnios para os quais não estão manifestamente preparados. Neste sentido, esta luta dos estudantes e dos profissionais da Arquitetura não é contra os Engenheiros, mas sim contra os legisladores que não compreendem a missão destas diferentes profissões e formações.
Curiosamente, esta lei vem também contrariar o reconhecimento do Governo pela Arquitetura Portuguesa através do incentivo à investigação e à sua divulgação cultural, acompanhando, ainda que tardiamente, o reconhecimento que as instituições internacionais estão a fazer, desde há alguns anos, com a contratação de Arquitetos e Arquitetas portuguesas para ensinar nas suas instituições de ensino e para projetar os seus edifícios e as suas cidades.
Torna-se assim urgente clarificar qual a mensagem que o Governo e a Assembleia da República pretendem transmitir às escolas de Arquitetura e de Engenharia sobre o papel social que esperam delas para que o direito à Educação e à Profissão não seja defraudado pelo órgão máximo do país. Esta exigência não deve emergir apenas das instituições académicas e profissionais, mas de toda a Sociedade que, desde sempre, tem vindo a valorizar estas duas profissões.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico