Décadas de falhas no paiol. A culpa foi do mexilhão
Falhou tudo em Tancos durante dezenas de anos, mas só foram responsabilizados os que falharam as rondas (e a lista de armamento). Azeredo diz que as autoridades de segurança foram informadas, mas não.
Agora é oficial: em Tancos, falhou tudo. E segundo o ministro da Defesa, falhou desde há pelo menos 20 anos. O documento de mais de cem páginas que Azeredo Lopes mandou aos deputados, ao fim do dia de quarta-feira, passa todas as falhas em revista. Só foge a atribuir responsabilidades.
Falharam as rondas. Desde logo porque não era claro quem era o responsável pela segurança desde o início da existência dos paióis, no final dos anos 1980: “Em 1987, portanto, parece ter-se gerado uma situação de pouca clareza no que toca à responsabilidade efectiva e integral pela segurança daqueles paióis”, afirma o Ministério da Defesa Nacional, citado no documento.
Mas falharam as rondas, também, porque falharam os meios. Até 2004 por incapacidade de preencher os lugares de mais de 40 elementos determinados como necessários; depois disso, porque se acabou o serviço militar obrigatório e, com isso, todos os ramos das Forças Armadas ficaram com graves insuficiências de recursos humanos. Daí para cá, havia destacamentos de menos de dez pessoas, responsáveis por rondas que não tinham já directivas certas.
Falhou a videovigilância. Porque “não existem quaisquer sistemas de sensores e de videovigilância em funcionamento”, já que, depois de muitos alertas, o material foi decretado “inoperacional e irrecuperável” em 2012.
Falhou a infra-estrutura. E basta um parágrafo do relatório para perceber o quanto: “As portas não têm os requisitos de segurança exigidos; as fechaduras não têm os requisitos de segurança exigidos; a rede de segurança periférica encontra-se degradada em alguns pontos; existem pára-raios que não estão operacionais, sendo necessária a sua substituição.”
Falharam as inspecções das Forças Armadas. Porque nem uma, nos últimos 30 anos, passou por Tancos, apesar de, em 2012, a Inspecção-Geral do Exército ter identificado “quatro áreas preocupantes no âmbito da segurança no Exército”, incluindo a segurança do material de guerra e a segurança física das unidades. Mesmo a última inspecção à Unidade de Apoio Geral de Material do Exército “circunscreveu-se ao aquartelamento de Benavente”, sublinha o documento enviado aos deputados.
O que não falhou foram os avisos. Sobre a falta de meios humanos para as rondas, vindos de várias estruturas e prolongando-se até aos últimos anos; sobre a ausência de videovigilância, vindos da base de Tancos e chegando a vários ministros (incluindo o que está em funções); sobre o problema de segurança no Exército, vindo da inspecção-geral.
Mas também se falhou na resolução dos problemas. No relatório agora divulgado, Azeredo Lopes esforça-se por mostrar que começou a desencadear os processos, relevando que assinou o despacho para incluir Tancos no programa de renovação da videovigilância do paiol em 2017, pouco antes do furto, e que já tinha no orçamento uma verba para reforçar a infra-estrutura. Com as cem páginas de “factos e documentos”, Azeredo (empossado em Dezembro de 2015) tenta, por várias vezes, dizer que não lhe competia mais do que isso. E sobretudo mostrar que, depois do furto, coordenou uma inspecção que deu resultados assustadores no Exército (“existe um nível de risco elevado” de segurança). Tendo depois desencadeado um processo de grandes alterações estruturais.
As culpas, para já, só não falharam para quem menos pesa. O documento confirma a existência de quatro processos disciplinares, mas todos só e apenas sobre o que aconteceu no furto. Um sargento que, “por lapso, não actualizou a folha de registo de quantidades de material” (e fez o Exército passar a vergonha de recolher mais armas roubadas do que sabia existirem no paiol); um praça que “incitou os Soldados da Guarda de Polícia aos Paióis Nacionais de Tancos a prestarem falsas declarações”, induzindo a investigação na existência de rondas que não existiram; mais um oficial e um sargento que não executaram as devidas rondas, um deles “colocando informação falsa no relatório que elaborou, ao reportar rondas apeadas com horas e respectiva constituição”.
Na centena de páginas do relatório, Azeredo Lopes não fala de outras responsabilidades sobre tudo o que falhou em Tancos. Sublinha a “lealdade e espírito de colaboração” dos máximos responsáveis militares no cumprimento das suas ordens. Ignora todos os responsáveis, políticos e militares, que nada fizeram para acabar com tantas fragilidades detectadas em Tancos — e noutros equipamentos do Exército, como em Santa Margarida. Remetendo qualquer outra “culpa” só e apenas para o processo que decorre na Justiça.
Azeredo faz também uma cronologia extensa sobre o que se passou logo após o furto, para garantir que todos os procedimentos foram desencadeados em conformidade. Diz que o roubo foi detectado às 16h30 de dia 28 de Junho, que duas horas e meia depois foi informada a PJ Militar, que “nesse mesmo dia” foi informado o Ministério Público. Ele, o ministro, soube “ao fim da tarde”, quando chegou a Bruxelas para uma reunião da NATO — e foi sendo informado dos acontecimentos daí para a frente. Só não refere a queixa da secretária-geral de Segurança Interna, que foi ao Parlamento dizer que só soube 24 horas depois, pelas notícias dos jornais. Dois dias depois do roubo, falaria com o chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas, para convocar uma reunião da Unidade de Coordenação Antiterrorismo.
Granadas roubadas tiveram ordem de destruição em 2012
Num filme que parece saído de um episódio dos Monty Python, o relatório enviado pelo ministro ao Parlamento assume que parte do material de guerra que foi roubado não estava apenas obsoleto, tinha tido ordem expressa de destruição cinco anos antes.
“Na verdade, já em Julho de 2012 a Repartição de Manutenção da Direcção de Material e Transportes do Comando de Logística enviou informação relativa à necessidade de recolher e interditar o lote RAN 85 M 001-011 de Granadas Foguete Explosivas LAW.” Mais até: explica que esse lote não foi destruído para ser usado num curso interno do Exército, destinado precisamente a ensinar a destruir armamento já desactualizado. Acontece que aquele curso “não teve lugar”.
O documento serve para explicar outra surpresa que apareceu com o roubo em Tancos, a do material que foi recuperado no fim do ano (por denúncia anónima) e que o Exército não sabia existir. “A caixa de material recuperada e não contemplada na lista de material furtado foi colocada no paiol em momento anterior ao furto, sem que dela tivesse sido dada entrada, razão pela qual se veio a verificar a discrepância referida”, detalha o relatório, explicando depois que foi instaurado um processo disciplinar a quem não pôs esse material na lista de inventário do paiol.