Uma proposta modesta para salvar o Chiado
A fórmula para salvar os alfarrabistas da Rua do Alecrim, em Lisboa, está à frente dos nossos olhos. Não consegui falar com o actual marquês de Pombal, proprietário das lojas. Mas como descendente de um português iluminado, vai com certeza gostar da proposta.
É prematura a notícia da morte da Rua do Alecrim — que nos leva do Chiado à beira-rio — mas o funeral aproxima-se e terá réplicas. Depois do Alecrim, morre a Rua Garrett, a seguir a Nova do Almada, a da Misericórdia, do Carmo e, nesse ponto, como acontece nas doenças infecto-contagiosas, o vírus espalha-se por toda a Baixa de Lisboa.
Se não fizermos nada. Se deixarmos as coisas avançarem organicamente, estas ruas vão desaparecer das vidas dos residentes do centro histórico e dos “forasteiros” de Alvalade, de Algés ou da Amadora. As ruas morrem quando deixamos de lá ir. Não é ficção. Para além dos homens-estátua, há quanto tempo não vê um “local” na Rua Augusta? É compreensível. O Mercado da Ribeira é mais tranquilo. Em 1994 fiz uma reportagem em Celebration, uma cidade “falsa” inventada pela Disney, na Flórida, com cópias da arquitectura dos “bons velhos tempos” americanos, coretos e colunas neo-neo-clássicas e aquele revivalismo infantil que só fica bem nos livros da Anita. É um lugar esquisito. Na baixa lisboeta, já temos a Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau, que vende pastéis de bacalhau com queijo da Serra “desde 1904” (mas chegou em 2015), as enguias de escabeche “desde 1942” (que chegaram em 2016), uma terceira loja-irmã acaba de inaugurar na Rua da Prata, para não falar d’O Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa, o sóbrio nome escolhido para uma loja parecida no Rossio. Na Rua Augusta, os empregados não falam português, such a silly detail, e todos os novos negócios encontraram um bonito verso de Fernando Pessoa para que os clientes tenham uma “experiência cultural”.
A boa notícia é que a solução para o Chiado e para o centro histórico de Lisboa está à frente dos nossos olhos. Perante este estado de coisas, é urgente aplicar uma estratégia moderna, que responda à transformação dos novos tempos, mas respeite a cultura e o património e — cereja em cima do bolo — garanta eficiência e sustentabilidade.
No Chiado, há quatro igrejas que, além de terem bonitas fachadas, têm áreas bastante amplas. Claramente, o bairro não precisa de tantos templos religiosos. Além de estarem vazias a maior parte do tempo, mesmo em hora de missa, as igrejas mostraram serem incapazes de gerar receitas suficientes para garantir o aquecimento dos interiores, a segurança dos equipamentos e o restauro em continuum que edifícios com dois séculos exigem.
Se juntarmos a Igreja de São Roque, lá em cima, as igrejas do Chiado equivalem a três campos de futebol. São um activo interessante, mas têm um problema de gestão grave. Um uso mais amigo do bairro, afinal esta é uma “zona prime”, geraria lucro e permitiria, através de um sistema justo, uma redistribuição de receitas em benefício da maioria. Um upgrade, mesmo que suave, teria vantagens a curto e a longo prazo. O actual marquês de Pombal, proprietário de alguns edifícios na Rua do Alecrim, seria o primeiro beneficiário: já não teria de expulsar os alfarrabistas e antiquários que ali estão há décadas e a quem ele teve, forçado pela pressão do turismo, de triplicar a renda. Um Programa de Urbanismo Comercial do Centro Histórico (PUCCH) de Lisboa adequado à situação implicaria descontinuar as quatro igrejas. A Basílica dos Mártires seria um bom recinto de bowling. Afinal, esta é apenas uma reconstrução feita após o terramoto do que era, também, apenas uma expansão da ermida original de 1147. Num espírito construtivo, e para que os turistas possam ter uma experiência da cidade, manter-se-ia à vista a Maleta de Caracteres Stencil Para Texto, um objecto insólito cuja função permanece um mistério. Também não há razão para nos agarrarmos com sentimentalismo à Igreja do Loreto, que à sua maneira também é fake (ali existia a ermida de Santo António, em cima da qual os italianos construíram já duas igrejas, a última depois de 1755). O potencial é grande. O Loreto tem 12 capelas, um excesso. Seria fácil escolher uma, talvez a favorita de Eça de Queirós. É de manter activa a missa de domingo das 11h30, a única em italiano, de modo a preservar a história do lugar. Já as missas em português podem ser deslocalizadas para a periferia. Seria um bom hotel de luxo, talvez ao estilo veneziano, com escadas à Danieli. A fachada, claro, é para ficar. O fogo posto que em 2017 queimou parcialmente a Igreja do Loreto mostra, aliás, a necessidade de entregar o equipamento a alguém capaz de contratar a Securitas. O mesmo com a Igreja da Encarnação. Não vamos ser puristas com uma igreja que, para nascer, destruiu parte da muralha fernandina. Além disso, passará a estar ainda mais vazia, porque com este PUCCH de Lisboa, todos os residentes com salários abaixo dos quatro mil euros líquidos mensais serão reinstalados em bairros sociais na periferia e a Encarnação sempre foi a igreja dos pobres. De modo a respeitar a sua história, mais tolerante e menos elitista, seria um bom pavilhão multiusos. A Igreja do Sacramento, com o seu acesso fora da caixa, seria a casa permanente da Web Summit.
Temos de pôr a nostalgia atrás das costas. As cidades mudam. A própria Rua do Alecrim já se chamou Rua do Conde, Rua Direita do Conde, Rua Antiga do Conde, Rua Direita do Alecrim e Nova Rua das Duas Igrejas. Temos de olhar para este problema com modernidade. Temos de saber optimizar os espaços, não ter medo de arriscar e explorar uma boa oportunidade de negócio. As igrejas do Chiado têm menos clientes diários do que os alfarrabistas da Rua do Alecrim. O upgrade da utilização dos seus metros quadrados é, para além de urgente, um passo natural.