O problema da madeira queimada: o nosso cemitério de árvores em pé
Em face deste cenário de excesso de oferta de madeira, e de menor capacidade de consumo pela indústria, o mercado da madeira ficou subitamente desregulado.
Tenho participado em trabalhos voluntários em áreas devassadas pelos incêndios de 15 de outubro, na freguesia de Covas e Vila Nova de Oliveirinha, concelho de Tábua, através da plataforma Não Vamos Esquecer — que tem vindo a dar apoio, sob diversas formas, às populações destas freguesias afectadas pelos incêndios. Sob esse pretexto, acabei por contactar com os proprietários de pequenas propriedades, tendo ouvido queixas sobre a dificuldade de escoar a madeira ardida. Contam-me que os madeireiros da região estão a praticar preços cada vez mais baixos, ocorrendo até já nem mostrarem interesse pelas suas áreas, tanto é o excesso de madeira na região. No caso de propriedades minúsculas, os donos dizem frequentemente que preferem ser eles próprios a cortar as poucas dezenas de pinheiros para ficar com a lenha, pois sabem que ela virá a escassear em breve. Em conversa, o dono de uma serração em Vendas de Galizes, no concelho vizinho de Oliveira do Hospital, também ele madeireiro (i.e. faz exploração florestal), disse-me que, no momento, já não estava a aceitar mais ofertas de madeira, pois o parque da sua serração estava completamente farto. Referiu-me que nas últimas compras de pinho estava a praticar valores na ordem dos 25 a 30 euros/ton em pé para madeira acima de 18 cm de diâmetro na ponta mais fina; e admitiu que antes dos incêndios praticava valores superiores. De facto, sabe-se que antes dos incêndios o valor da madeira de pinho em pé com esses diâmetros era valorizada em, pelo menos, 35 a 40 euros/ton.
Compreendi que o cenário só poderia ser este e que certamente encontraria eco um pouco por todo o interior ardido, pois além do súbito excesso de madeira disponível a situação foi ainda agravada pelo facto de grandes industrias consumidoras de madeira terem sido destruídas pelo fogo.
Só ali na região arderam a Central Termoelétrica de Mortágua, a fábrica Pellets Power de Mortágua e a fábrica de painéis derivados de madeira da Sonae Arauco, em Oliveira do Hospital. Todas estas indústrias somadas deveriam consumir pelo menos umas 750 mil ton/ano de madeira de pinho — o que é mais de duas mil ton/dia, ou seja, cerca de 50 veículos pesados a circular por dia carregados com faxina e rolaria.
A Central Termoelétrica de Mortágua era responsável por consumir cerca de 300 ton de biomassa/dia. No ano de 2016, ultrapassou a marca e foram consumidos 137 mil ton de biomassa florestal. Ali ao lado, a Pellets Power de Mortágua era responsável por produzir pellets essencialmente a partir de madeira de pinho. A capacidade instalada de produção anual era de 100 mil ton de pellets, o que implicaria um consumo potencial de aproximadamente 192 mil ton de madeira de pinho. Quanto à Sonae Arauco de Oliveira do Hospital, não obtive dados de produção, porém estimo que o consumo anual não deveria ser inferior a 200 mil toneladas.
Na região apenas sobreviveu a fábrica de pellets Pinewells, próxima a Arganil. A capacidade instalada de produção anual é de 120 mil ton de pellets, o que implica um consumo potencial de aproximadamente 230 mil ton de madeira de pinho anual. Porém, como é expectável, em face da grande oferta de madeira após os incêndios, em janeiro de 2018 tive informações que estaria a pagar a faxina de pinho (diâmetro de quatro a 14 cm), à porta da fábrica, apenas a 21 a 22 euros/ton quando antes dos incêndios cobraria pelo menos 32 euros/ton. Em meados de fevereiro, tive novas informações que o valor pago tinha descido para os 18 euros/ton. Entretanto, tentei contatar a Pinewells para confirmar estes valores; esta escusou-se a falar sobre o assunto.
Em face deste cenário de excesso de oferta de madeira, e de menor capacidade de consumo pela indústria, o mercado da madeira ficou subitamente desregulado, na melhor das hipóteses não retribuindo o produtor florestal por um valor justo pela sua madeira. A consequência de se manter o gigante cemitério de árvores mortas em pé na paisagem será o apodrecimento da madeira e, portanto, a perda total do seu valor, o aumento de risco de novos incêndios e a dificuldade de circulação nos terrenos, que será ainda mais agravada pela queda das árvores mortas, aumentando a dificuldade das operações de replantação, do reaproveitamento da regeneração natural e até as futuras limpezas de mato.
Uma das soluções para mitigar este problema seria a exportação, com as desvantagens que adiante se perceberão. A outra passa pela criação de parques de recepção de madeira queimada que, através da rega contínua, mantenha a madeira conservada no momento em que esta é excessiva, para ser posteriormente utilizada a médio e longo prazo. Dentro de dois anos, será muito importante para o país dispor da madeira que agora possa ser armazenada pois, nessa altura, irá faltar matéria-prima para a indústria. Estamos a falar de uma área gigantesca, de 442 mil ha, onde não haverá exploração florestal e aquilo que irá sobrar, como cemitério de árvores mortas em pé, já não terá qualquer possibilidade de uso.
A ação de constituição de parques de recepção de madeira queimada deveria ter sido uma medida tomada com caráter de urgência após a catástrofe que causou a queima das árvores, pois estas, quando mortas, iniciam muito rapidamente processos de deterioração, nomeadamente por fungos que causam o azulado da madeira (o que a desvaloriza para serração). Segue-se o ataque de insetos, a decomposição e seu apodrecimento. Assim, quanto mais cedo se intervir melhor.
Segundo António Loureiro (comunicação pessoal), chairman da Unimadeiras, a madeira de pinheiro bravo ardida nos incêndios de junho já se encontrará em mais de 50% estragada e perdida para o uso de serração. Se a madeira de pinho queimada nos incêndios de outubro for armazenada de imediato em parques de madeira com rega contínua, é espectável que esta se conserve em boas condições pelo menos três ou até quatro anos (haverá sempre algumas perdas, que podem ser consideradas na ordem dos 10%). Por outro lado, diz, se a madeira ardida em outubro não for conservada rapidamente, mantendo-se na floresta em pé, após uns poucos três meses de calor sem chuva, é de esperar a perca irreversivel do seu valor. Isso ocorrerá lá para julho.
Este tipo de conservação de madeira com rega contínua foi posto em pratica, por exemplo, na França após a tempestade Klaus de 2009. Só na Aquitaine, região das Landes, foram derrubados, arrancados, e quebrados, pelo efeito da tempestade 38 milhões de m3 de madeira de pinheiro bravo, o que em área representa 160 mil ha nos quais a floresta foi destruída em pelo menos 60% das existências.
A tempestade ocorreu a 24 de janeiro de 2009 e passados nove meses, em final de outubro, já estavam armazenados em parques 2,960 milhões de m3 de madeira (some-se: exportação de 1,237 milhões de m3; consumo pela indústria de 4,025 milhões de m3). Depois da tempestade de 2009, para financiar o transporte e o armazenamento da madeira derrubada, e também a abertura de 30 mil km de caminhos florestais, o Estado francês despendeu 135 milhões de euros e mobilizou 200 milhões de euros em empréstimos bonificados. Terminada a operação, foram armazenados em parques regados oito milhões de toneladas de madeira.
Aqui em Portugal o Governo reagiu tarde. Logo em junho o Governo poderia ter começado a criar medidas para interferir no mercado, tentando estabilizar a oferta, apoiando a criação de parques de recepção de madeira queimada. Isso não ocorreu. Saliente-se que arderam 53 mil ha apenas contabilizando os incêndios de junho que tiveram origem em Pedrogão Grande. Sucedeu-se um verão durante o qual a área ardida não parou de aumentar. O Governo continuou a ignorar o problema. Após os incêndios de 15 de outubro a área ardida somou-se em 442 mil hectares e, ainda assim, nada com caráter de urgência surgiu! Apenas a 11 de janeiro de 2018 o Ministro da Agricultura assina o Despacho Normativo n.º 2-A/2018 que “define as regras de atribuição de apoios ao armazenamento de madeira queimada de espécies resinosas proveniente de áreas atingidas por incêndios em 2017, no âmbito da criação de novos parques ou ampliação da capacidade de armazenamento de parques já existentes”. Mas o país ainda teve de esperar um mês (08/02/2018) para sair no portal do ICNF o “aviso de abertura de concurso de apresentação de candidaturas para a criação de parques de madeira queimada [...]”. Estamos a meio de março, a cinco meses dos últimos incêndios, e continuamos sem que esteja sequer aprovado um só parque de madeira queimada! Infelizmente, pela forma lenta como o Governo está a gerir este processo, é possível que quando vier a aprovação das candidaturas para a criação de parques de madeira queimada já não exista madeira em condições que mereça o investimento necessário ao seu armazenamento.
Conforme está nos papéis, e sem entrar em grandes detalhes, um dos exemplos de apoio formalizado pelo Governo para a criação de parques de madeira queimada define que o parque de madeira financiado tenha de assegurar um preço mínimo de compra (que é de 46 euros/ton para a madeira de serração acima de 20 cm de diâmetro colocada no parque). Cumpridos os preços mínimos referidos, o Estado apoiará o detentor do parque em 3,50 euros/ton se a madeira for armazenada com rega, e apoiará o produtor florestal, que entregar essa madeira no parque, no valor de 4 euros/ton. Assim, o produtor florestal conseguirá receber um total de 50 euros/ton pela madeira colocada em parque, que é quase o valor que valia a madeira antes da ocorrência dos incêndios, e o detentor do parque despenderá 42,50 euros/ton pela madeira adquirida, possibilitando ter uma margem interessante para posterior venda da madeira, em período de escassez, por, considero eu, pelo menos uns 60 euros/ton. O Governo lança esta medida com a expectativa ousada de conseguir uma capacidade de armazenamento de até dois milhões de ton de madeira queimada por empresas privadas que, através dos apoios financeiros do Estado, se interessem e invistam na compra maciça de madeira queimada. Estes apoios parecem ser interessantes e espera-se que entidades privadas se aliciem neste negócio. Pelas razões já apresentadas, este importante processo deveria ter ocorrido com celeridade. Nesse aspecto o Governo mostrou ineficiência ao adiar decisões que deveriam ter sido imediatas.
A 22 de janeiro de 2018, na Marinha Grande, durante a apresentação da estratégia de recuperação do Pinhal de Leiria, o presidente do ICNF disse que iria colocar em hasta pública "cerca de 1,1 milhões de m3 de madeira de serração, acima de 20 cm de diâmetro, e cerca de 600 mil m3 de madeira de trituração" provenientes das várias (sete) matas nacionais que arderam no litoral. Cerca de 40% dessa madeira é proveniente da Mata Nacional de Leiria. Esta decisão do ICNF é, na minha opinião, uma falha na gestão florestal do Estado. Não faz sentido que, estando o mercado com excesso de madeira, e havendo neste momento milhares de proprietários que não conseguem encontrar um escoamento para a sua madeira ardida (o que, para além dos problemas já referidos, inviabiliza a reflorestação) ou, pelos menos, a valores minimamente justos, venha o ICNF agravar o problema ao alienar 1,7 milhões de m3 de madeira!
Acredito que o ICNF deveria gerir efetivamente aquilo que é da sua responsabilidade, investindo sempre que necessário, devendo ser um organismo com uma intervenção proativa no terreno. O ICNF deveria ter, ele próprio, criado um, ou vários, parques de conservação de madeiras queimadas, onde colocasse a sua madeira queimada. Agindo para ser parte da solução e não para aumentar ainda mais o problema de excesso de madeira. Quando, dentro de dois anos, a madeira escassear e as indústrias tiverem dificuldade em obter a matéria-prima essencial ao seu funcionamento, o ICNF poderia, então, colocar em hasta pública os lotes de madeira que armazenou.
Atendendo ao estado em que está o ICNF, não me surpreende a falta de estratégia e de capacidade de investimento deste organismo do Estado. Os governos dos últimos 40 anos têm querido libertar-se das responsabilidades diretas relativamente à floresta e daí a situação indefinida e moribunda em que se encontra o organismo público responsável pela mesma. É importante que os portugueses saibam que não tem de ser assim! Mais do que nunca, após os incêndios de 2017, devemos exigir que os governos reforcem o papel do ICNF na floresta pública e comunitária em regime de co-gestão.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico