O interior do interior

Estas terras pedem socorro. E o socorro de que precisam não são bombeiros, mas administração pública.

Leio e oiço lamentos, protestos, apelos sobre o interior: o abandono, a desertificação, o descaso, o declínio, as crescentes fragilidades. Não são de mais. São justos e muito necessários. O último alerta a que reajo vem de Arlindo Cunha: “A problemática do interior é uma situação gravíssima que Portugal tem para resolver. A situação é, de facto, assustadora. Temos uma situação muito grave em termos de disparidade do território.” Entre outros males mais referidos (disparidade de rendimento e oportunidades e desertificação dos territórios), vaticinou “uma catástrofe demográfica anunciada” e a “morte do património rural”. Podemos repetir por estas ou outras palavras. Também escrevi um artigo, há dias, acerca desta antiga e candente questão. O problema é passar à acção, que é o que importa. Por que não se faz? Porquê?

Partilho o que retenho da minha experiência com esta questão, nos dois ciclos de vida pública que tive: o primeiro de 1975 a 1983; o segundo de 1998 a 2015.

O primeiro correspondeu ao advento do que viria a chamar-se a regionalização. Os constituintes conceberam as regiões administrativas, no lugar anteriormente ocupado pelos distritos. Na passagem da ditadura para a democracia, a escolha foi diferente da feita para os municípios: estes mantiveram-se tal qual e foram democratizados; para os distritos, previu-se a extinção, forjando-se as regiões. Nunca percebi bem porquê — não fui deputado constituinte. Sempre me pareceu que teria sido melhor manter os distritos e democratizá-los, na sua face autárquica — a outra face era desconcentração e dependeria já do governo democrático.

Hoje, não tenho dúvidas: esse foi o pecado original. Se se tivesse tratado os distritos como os municípios, a administração portuguesa teria mantido equilíbrio e não teríamos golpeado a coesão territorial da forma tão cavada e tão violenta como acumulámos nestas quatro décadas. A renovada instituição distrital ter-se-ia desenvolvido harmoniosamente, à semelhança dos municípios, proporcionando uma boa malha territorial, de descentralização e desconcentração, e gerando boa capacidade de integração do desenvolvimento e de economia do investimento público. É, como gosto de dizer, o patamar suficientemente próximo e suficientemente distante.

O segundo pecado foi não ter concretizado logo o novo figurino constitucional. Estas reformas devem concretizar-se na onda, quando o ferro ainda está quente. As regiões administrativas foram uma ideia bebida nos projectos de Constituição do PPD e do CDS, em 1975, talvez para reduzir o número de unidades intermédias e alargar a sua dimensão espacial: os distritos são 18; regiões houve-as apontadas a serem cinco, sete, oito, nove ou 11. Mas a instabilidade governativa impediu-o até 1979.

Em 1980, o Governo Sá Carneiro (PSD-CDS) agarrou logo no tema: lançou o Livro Branco da Regionalização, abrindo a porta à concretização da reforma. A trágica morte de Sá Carneiro, em Camarate, marcou novo sobressalto político. Recomposta a estabilidade política na Aliança Democrática, o Governo Balsemão, por impulso de Freitas do Amaral, relançou o processo no final de 1981. Foi um trabalho político vigoroso. Ao longo de 1982, o Governo PSD-CDS concluiu todo o trabalho técnico e de preparação legislativa, construindo-o em debate aberto por todo o país — também participei em inúmeras sessões e conduzi algumas. No final de 1982, com tudo pronto, faltava levar as propostas de lei à Assembleia da República, para debate final e aprovação. A AD, porém, entrou em crise, o Governo caiu e abriu-se novo intervalo de incerteza política.

Portugal só volta a ter estabilidade com a primeira maioria absoluta de Cavaco Silva, em 1987. O Governo PSD retomou o tema, sob orientação do ministro Valente de Oliveira, deixando o pacote legislativo da regionalização aprovado em 1991. Na segunda maioria absoluta, o Governo Cavaco muda de ideias, na esteira de resistências que já se manifestavam — e, no CDS, em simultâneo, passou-se algo de semelhante, acompanhando a viragem de CDS para PP. Por ironia do destino, a direita, inventora das regiões administrativas, passou a anti-regionalista.

É esta a onda que rola para o referendo de 1998, destinado a sufragar o relançamento do processo pelo Governo socialista de Guterres. Apoiei a regionalização, como outros sectores minoritários do PP e do PSD, assim como o PCP e parte significativa do PS. Mas a direita em geral e uma minoria do PS chumbaram-na, dando um resultado caricatural: o interior e o Norte chumbaram a regionalização! Como na altura escrevi, senti-me como o escuteiro da anedota: quer ajudar a velhinha a atravessar a rua, mas parece que o faz à força, pois a velhinha não quer.

À data do referendo, já a questão tinha azedado e apodrecera. Haviam passado 22 anos sobre a Constituição. E o novo contexto não ajudava. O discurso de vento em popa da “Europa das Regiões” acrescentou enormes — e justificadas — desconfianças. O “regionalismo”, algo folclórico, ganhara um fôlego político que assustava e pouco tinha a ver com o figurino autárquico. E a praga de se sair do familiar quadro distrital consolidara-se na base: não há nada mais sensível e manipulável do que mexer na definição de territórios e suas cidades-capital. O caldo ficou entornado de vez. Não é fácil reverter referendos — nomeadamente em matérias destas. Caímos no absoluto impasse.

A regionalização é uma lebre já corrida, um gato morto. Mas a política não o assimila e não é capaz de partir para outro caminho. Na Constituição, está tudo na mesma, como se estivesse tudo bem. Passados 20 anos sobre o referendo, devemos ser o único país no mundo em que a Constituição criou regiões administrativas e, ao fim de 42 anos, nem sombra delas!... Nem sequer um possível vislumbre também.

Hoje, a regionalização é uma tranca: não se faz, nem deixa fazer. Mesmo outras realidades ficaram encravadas. Por exemplo, as áreas metropolitanas (tão indispensáveis) aguardam clarificação quer do seu figurino e patamar, quer do seu espaço: ficam por cima ou por baixo das regiões? Ou ficam ao lado? E acumulou-se um vazio administrativo de desordem, contradição e caos, nos aparelhos territoriais do Estado e da administração autárquica.

Já houve um pouco de quase tudo. Unidades distritais foram subsistindo, até serem totalmente desmanteladas — contra a Constituição. Destruímos a capacidade técnica e administrativa dos distritos e suas cidades-capital. Houve uma grande fé nas CCR, mais tarde CCDR — que a prática reduziu a mais modestas proporções. Ensaiaram-se novas arrumações, de que nos chegaram as actuais CIM. Ambas são NUTS, unidades de referenciação estatística, mais do que pilares e motores da Administração Pública. Falha-se sempre o essencial: alma e corpo, unidades administrativas intermédias, pólos simultâneos de desconcentração e descentralização articuladas, capazes de gerir território de forma coesa e dar resposta às populações. É sabido que colhemos sempre o que semeamos. Tirámos voz e semeámos silêncio, colhemos esquecimento. Semeámos deserto, colhemos desertificação.

Nestas últimas décadas, nunca deixei de abordar o tema e de apelar a um novo começo, que preencha o vazio e reponha ordem e rumo. Em 2002 e 2005, fui cabeça de lista pelo CDS em Portalegre e, embora não eleito, vivi fisicamente a desertificação do interior. Vi-a crescer nesses três anos: quando pensamos que já bateu no fundo, há ainda um fundo mais fundo. Quando presidente do CDS, de 2005 a 2007, promovi as Jornadas do Interior, em Bragança, Castelo Branco e Portalegre, para inventariar e mobilizar. Depois, não houve continuidade. Propus o que chamei de “Região Interior”, gerando regimes especiais, em diferentes domínios, para a faixa raiana, de Alcoutim ao distrito de Bragança e outros territórios homólogos: dinamizar a economia, fixar e atrair as pessoas. Consolidei a ideia de que a praga não está no território, mas nas cabeças, isto é, nas políticas. A maior parte das nossas trocas comerciais faz-se com o resto da Europa, ou seja, em larga medida circula pelo interior. O interior, em rigor, é a nova praia, a nova frente de exportação/importação; nós é que continuamos a olhá-lo como retaguarda ou um sótão escuro.

Confrange ver que Badajoz (149.946 habitantes) tem mais população do que todo o inteiro distrito de Portalegre (118.506) — estão lado a lado no mesmo território. E, quanto à cidade de Portalegre, nem se fala: vale um décimo de Badajoz, apenas 15.374 habitantes e em contínuo declínio demográfico desde 1970. No centro norte, o panorama é também muito desigual: a cidade de Salamanca (144.949 habitantes), só por si, tem população quase igual ao distrito todo da Guarda (168.898 habitantes) e a cidade da Guarda (42.371 habitantes) pesa menos de um terço de Salamanca. Desenvolvi a ideia, para que tenho procurado reunir apoios, (infelizmente, sem sucesso), de que o problema se resolveria se conseguíssemos atrair e fixar dois grandes investimentos, um no eixo de Portalegre, outro no eixo da Guarda, produzindo a partir daí dois efeitos “Autoeuropa” que regariam todo o interior até ao litoral. Definir duas zonas económicas especiais, com quadros de 50 anos de duração, seria suficiente para inverter a rampa demográfica, consolidar fluxos de exportação para os mercados europeu e peninsular e transformar o interior de retaguarda decadente na poderosa frente de desenvolvimento do país que pode ser. Identifiquei o que chamei “interior do interior”, isto é, regiões particularmente vulneráveis no meio do interior e algumas até bem junto ao litoral. Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pêra integram esse “interior do interior”. Mas Pedrógão dista 80km da costa — será “interior”?

O mais problemático interior do interior é, porém, outro. É o atavismo que tudo retarda, arrasta e afunda. Desde o imbróglio e posterior impasse da regionalização, fica sempre a faltar o quadro administrativo. É preciso quebrar esse nó górdio. Sem uma reorganização administrativa territorial que responda a este vazio de quatro décadas, não será possível definir, sustentar e prosseguir as novas políticas que são urgentes. Sem isso, a voz não sairá dos microfones e os novos impulsos não sairão do papel. Precisamos de um murro na mesa. E, depois, de músculo para continuar, enquadrar, prosseguir. Em 2009 e em 2011, nas campanhas eleitorais pelo círculo do Porto, advoguei a necessidade de um novo Livro Branco sobre a Administração Territorial, que permitisse ganhar consciência densa da extrema gravidade do problema e rasgar as pistas dos novos caminhos. No meu espírito está o Livro Branco de Sá Carneiro em 1980 — em verdade, de Eurico de Melo e Silva Peneda — e a esperança de que pudesse ser novo tiro de partida, em linhas acessíveis e rapidamente concretizáveis.

É necessário partir outra vez. É necessário e é urgente. O mais prático, como tenho defendido, é retomar o quadro distrital, como, aliás, a Constituição nunca deixou de nos determinar e temos andado, anos a fio, a violar.

Precisamos de políticas públicas, incluindo políticas de povoamento. Estas terras pedem socorro. E o socorro de que precisam não são bombeiros, mas administração pública. Por que está o território desertificado? Porque o abandonámos! Deixemo-nos de tretas e fantasias. Ou acabamos com esse abandono pela administração — um autêntico crime administrativo, continuado — ou as tendências instaladas nunca serão interrompidas e continuarão a agravar-se. É esse enguiço que tolhe o interior do interior. É esse enguiço que importa quebrar e vencer. O que é urgente precisa de pressa.

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