Brasil: o ataque à liberdade de ensinar
Engana-se quem julga que o que se passa no Brasil é um simples confronto político semelhante ao que ocorre em qualquer democracia.
"O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil." Este é o título de uma disciplina de opção que Luís Felipe Miguel decidiu organizar na Universidade de Brasília onde é professor, seguindo todos os procedimentos académicos. A intenção é fazer o que se espera de qualquer universidade: ajudar a explicar a realidade política e social em que se vive a partir de uma metodologia científica; neste caso, para discutir o processo histórico e político do impeachment contra a Presidente Dilma Rousseff que levou, como bem se está a perceber, à suspensão de toda a normalidade constitucional no Brasil. O ministro da Educação do governo Temer, achando que se estava a usar uma universidade pública para "fazer proselitismo político e ideológico", acionou nada menos que a Advocacia-Geral, o Tribunal de Contas e o Ministério Público Federal para apurar se os responsáveis pela criação do curso não estariam a incorrer no delito de "improbidade administrativa". Ou seja, o Governo brasileiro tenta censurar a atividade de um docente violando dois preceitos constitucionais básicos em qualquer democracia: a liberdade de expressão e a autonomia universitária.
A reação de indignação foi imediata. Entre os primeiros a se solidarizarem com Miguel esteve Carlos Zacarias, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia (UFBA), um dos investigadores mais competentes, mais respeitados e civicamente mais empenhados da historiografia brasileira, com quem tenho o privilégio de trabalhar há já 12 anos. Desafiando corajosamente a intimidação do novo poder em Brasília, Zacarias decidiu replicar a iniciativa na UFBA. Em poucos dias, mais de 40 outras universidades brasileiras juntaram-se à iniciativa, desafiando a ameaça de um ministro que ficou conhecido logo em 2016 por ter concedido audiência ao ator porno Alexandre Frota (que muitos em Portugal se recordarão de uma imbecilidade televisiva) para ouvir as suas propostas sobre "o fim da doutrinação ideológica nas escolas"! Que um patético Frota confunda investigação científica com "doutrinação" decorre das limitações próprias da personagem; que um ministro federal queira sancionar funcionários públicos por "promoção de pensamentos político-partidários" já soa mais a Hermann Goering, que dizia puxar da pistola quando ouvia a palavra "cultura", ou a auto-de-fé disfarçado de cumprimento da legalidade. Não há opressão que não simule legalidade e que não invoque preocupação com o bem público.
Para agravar o ataque descarado à liberdade de ensino, um vereador direitista da Câmara de Salvador, cidade em que está sediada a UFBA, denunciou Carlos Zacarias na justiça. Ao fazê-lo, e num ambiente hoje politicamente tão crispado quanto o brasileiro, a intenção é duplamente intimidatória: intimado a justificar-se perante um juiz, o professor está a ser automaticamente transformado em alvo de "grupos de ódio, [...] de grupos de extrema-direita, grupos parafascistas, que estão se organizando, e nessa altura eu posso ser reconhecido pelas fotos que foram veiculadas e que transformaram meu nome e a minha figura em alguém que pode ser alvejado por essas pessoas com ódio" (Zacarias, entrevista à Revista Fórum, 12.3.2018).
Engana-se redondamente quem julga que o que se passa no Brasil desde há mais de dois anos é um simples confronto político semelhante ao que ocorre em qualquer democracia, com mais ou menos corrupção no meio. O que ocorre no Brasil, e em grande parte das Américas e da Europa, é uma verdadeira transição autoritária com um significado histórico semelhante ao de outros processos de natureza idêntica ocorridos há 40, 50 ou 90 anos atrás. Nuns lugares a pretexto da "luta antiterrorista", noutros (Espanha, Brasil) a pretexto da "defesa das instituições", e sempre em nome da "democracia", é a própria democracia que se ataca. A nova ordem brasileira, que não foi legitimada sequer, como costuma ocorrer com as transições autoritárias, por um qualquer processo eleitoral mais ou menos manipulado, assume hoje a posição de Carrero Blanco, o número dois de Franco, em 1973, prototípica de qualquer ditadura: "Não aceitamos as interpretações subjetivas que do nosso Regime fazem ou possam fazer determinados grupos e indivíduos; só aceitamos a interpretação institucional."
"A universidade é hoje um foco de resistência contra o Estado de exceção que começa a se configurar no Brasil", diz Zacarias. "Se não há o direito de a gente ensinar sobre o golpe [...] é porque a gente vive em um Estado de exceção." Não lhe falta a solidariedade de muitos colegas brasileiros. A minha (e, estou certo, a de muitos portugueses que o conhecemos bem) manifesto-lha aqui. Incondicional!
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico