Hamburgo: do novo espelho à beira-rio vêem-se horizontes futuros

Quando o que parecia impossível finalmente se concretiza, só resta um caminho: sonhar mais alto. Na segunda maior cidade alemã, há bairros modernos a nascer do zero, bunkers a tornarem-se natureza e velhos edifícios a ganharem novas funções artísticas, sociais e de contracultura. Fora dos circuitos habituais, fomos conhecer a Hamburgo que está a despontar.

Foto
Fabian Bimmer

Durante mais de uma década, a Elbphilharmonie foi ferida aberta na paisagem e, sobretudo, no orgulho da cidade. Do primeiro esboço à inauguração do edifício, arrastaram-se 16 anos de avanços, disputas e recuos que custaram aos cofres de Hamburgo dez vezes mais do que a primeira estimativa oficial. O descontentamento da população foi-se multiplicando ao ritmo das polémicas, dos atrasos e dos custos: no final, cerca de 800 milhões de euros, maioritariamente suportados pela autarquia. Tornou-se obra non grata.

Mas, um ano depois da abertura da Filarmónica de Elba, o reflexo das ondas cristalinas do edifício chega a grande parte da cidade. E é inegável: o porte altivo impressiona. Bases robustas, feitas de um antigo armazém portuário construído em 1966; e topo etéreo, de curvas impossíveis que espelham o rio, a velha cidade, os novos bairros que se erguem para sudeste, e o horizonte de gruas do terceiro maior porto da Europa. É o novo símbolo de Hamburgo. O cartão-postal que devolveu a cidade às bocas do mundo, entre aficionados de música clássica (e não só) e os tops turísticos que todos os anos elegem os próximos destinos a visitar.

É nela que começamos a viagem aos futuros que se constroem em Hamburgo. A pedra no sapato quer revelar-se diamante e provar que até o que durante anos pareceu impossível pode ser concretizado. Tom Schulz, assessor de imprensa da Filarmónica de Elba, enumera descomplexadamente as polémicas e as críticas. Mas também quer falar-nos do sonho de Alexander Gérard e Jana Marko, os promotores iniciais do projecto, e de Herzog e de Meuron, a dupla de arquitectos responsável pelo desenho do edifício.

“A demografia desta zona mudou drasticamente”, começa por contar, recuando aos anos de 1990. À medida que as operações portuárias iam sendo transferidas para a outra margem do rio, os armazéns, que durante décadas guardaram tabaco, café, chá e outras mercadorias, iam caindo em desuso. Toda esta área da cidade tinha de ser repensada. Para o Kaispeicher A, a ideia era transformá-lo num centro de media e de novas tecnologias. “Mas os dois arquitectos queriam uma sala de espectáculos”, recorda. Um dia, Herzog terá pegado numa fotografia do estranho bloco de tijolos e desenhou-lhe uma estrutura ondulada no topo. Assim começava a nascer a Elbphilharmonie.

Foto
Hamburg.de/Joerg Modrow

Actualmente, a “maior escada rolante curva da Europa” atravessa todo o edifício original para nos deixar sobre a antiga cobertura de tijolo, transformada em praça aberta ao público, com restaurantes, loja de recordações e um miradouro com 360 graus de vistas panorâmicas sobre a cidade e arredores. Para cima, ficam as duas salas de espectáculos — cujo desenho e acústica são uma obra notável de engenharia por si só; e diferentes áreas de foyer, um hotel com 244 quartos e 45 apartamentos de luxo.

Tem sido um primeiro ano de sucesso, garante o responsável. “Achávamos que se tivéssemos 1,4 milhões de visitantes na Plaza já seria um êxito. Recebemos 4,5 milhões de pessoas”, contabiliza. A ideia seria manter o acesso gratuito durante pelo menos dois anos, para que todos os habitantes da cidade pudessem visitar e desfrutar das vistas. Fazer as pazes com o monumento. Mas a afluência tem sido tanta, com tantos turistas à mistura, que os responsáveis ponderam antecipar a cobrança de entrada. Para já, há que esperar nas filas ou adquirir um bilhete antecipadamente (não tem custo, mas horários de entrada a respeitar, para controlar o fluxo de visitantes). Um desafio maior tem sido conseguir assistir a um concerto. A maioria dos espectáculos tem esgotado com largos meses de antecedência.

“Até a minha mãe, que era ferozmente contra a Elbphilharmonie, deu o braço a torcer quando visitou”, há-de confessar-nos Guido Neumann, chefe do departamento de assessoria de imprensa do Turismo de Hamburgo. Um ano depois da inauguração, a polémica sala de espectáculos continua a pontuar todas as conversas. Há quem se tenha rendido, quem ainda espere por ser convencido e quem a utilize como medida de comparação para todas as obras que se realizam na cidade. Uma coisa é certa: apesar da Elbphilharmonie, ou por causa dela, Hamburgo não deixou de sonhar com o futuro. Em grandes projectos megalómanos e futuristas. Ou recuperando a história para nela reerguer ideais culturais e artísticos.

Foto
REUTERS/Axel Schmidt

O jardim no bunker, a cultura no bairro histórico

Para já, não passa de um mono cinzento com um passado bélico e um presente musical. Mas o Hilldegarden aspira ser tudo aquilo que acabámos de enunciar e um pouco mais: um projecto megalómano e futurista que quer recuperar um antigo bunker da Segunda Guerra Mundial para enchê-lo de artes, projectos comunitários e culturais, um memorial, um hotel e outras tantas áreas, e cobri-lo com um jardim público no terraço. Confuso? A ambição do projecto não é pequena.

Localizado junto ao estádio do St. Pauli, o clube desportivo mais acarinhado da cidade (mais pelo ambiente festivo vivido nas bancadas e pela tradição de activismo social de esquerda do que propriamente pelos resultados desportivos da equipa, actualmente a disputar a segunda liga alemã), o enorme bunker de defesa antiaérea nazi foi erguido em 1942, por trabalhadores forçados, em menos de 300 dias. Chegou a albergar mais de 25 mil pessoas, enquanto as bombas dos Aliados fustigavam a cidade. No terraço, ainda se distinguem os antigos paióis ou as torres onde os habitantes locais manuseavam o armamento antiaéreo.

O projecto Hilldegarden não quer apagar esse passado. Um dos grupos que tem desenvolvido ideias junto da comunidade local focou-se precisamente na história do edifício para criar um memorial em honra das vítimas. Mas o projecto quer virar a página. Se não é possível destruir o edifício, que seja agora utilizado para algo positivo. “Transformaram-no numa coisa pacífica”, há-de descrever o guia turístico Malte. No interior, fica uma das discotecas mais badaladas da cidade (Uebel & Gefährlich), lojas de instrumentos musicais, escolas de música, uma rádio e outras empresas ligadas aos sectores das artes e dos media.

No futuro, o actual dono do edifício quer acrescentar-lhe seis pisos e novas valências, incluindo áreas desportivas, um hotel, uma residência artística e espaços gastronómicos. Além de um ambicioso jardim público, com hortas comunitárias, sobre os diferentes patamares do terraço. A ideia é ser “um projecto-piloto para um novo tipo de natureza urbana sobre a cidade”, descreve Tobias Boeing, um dos responsáveis. Lá de cima, vê-se grande parte de Hamburgo. O estádio, o descampado onde decorrem várias feiras populares ao longo do ano (em Julho, o concorrido festival DOM), a torre da igreja São Miguel, até agora o semblante mais icónico da cidade, e, logo atrás, a nova silhueta ondulante da Filarmónica de Elba.

Foto
REUTERS/Christian Charisius

É nessa direcção que seguimos num passeio pelo centro. Cruzamos a tríade de tribunais da cidade e a Laeiszhalle, a histórica sala de concertos mandada construir por um armador hamburguês no início do século XX. Abeiramo-nos do Binnenalster, o mais pequeno dos dois lagos criados artificialmente no rio Alster, e da câmara municipal, de arquitectura neo-renascentista. Até mergulharmos no bairro das lojas de grandes marcas nacionais e internacionais.

Pelo caminho, passamos por Gängeviertel, quarteirão histórico entalado entre grandes prédios modernos, onde se ensaia outro futuro para a cidade. Foi em 2009 que um grupo de artistas e activistas ocupou os edifícios para mudar-lhes o destino. O que restava de um extenso bairro operário construído no século XVIII ia ser demolido pelo novo proprietário para dar lugar a escritórios. Os activistas não arredaram pé, unindo dezenas de cidadãos ao protesto, e a autarquia voltou a adquirir os edifícios.

Desde então, o grupo transformou-se em colectivo e juntos gerem a reabilitação e ocupação dos diferentes espaços, transformando a dúzia de prédios de tijolo e janelas em caixilhos de madeira num centro artístico e comunitário, com apartamentos, ateliers, cafés e salas para aulas, espectáculos, exposições, palestras e projectos sociais. Ao longo da estreita viela, uma profusão de cores, entre grafitis, instalações artísticas e esplanadas de madeira. A chuva e o frio dão-lhe um ar abandonado, mas Malte garante que no Verão costuma estar cheio, com diversos eventos culturais na agenda.

Da contracultura à gentrificação

Hamburgo não é uma cidade fácil para quem a visita pela primeira vez. Sucessivamente destruída por guerras e desastres, não abundam os monumentos, os bairros ou os equipamentos culturais históricos que atraem milhares de pessoas a outras paragens. A grande maioria dos turistas é alemã (corresponderam a 77% dos visitantes no ano passado) e o museu de miniaturas a atracção mais popular. Também não é pela cronologia impressa nas fachadas que nos podemos guiar. O velho e o novo convivem um pouco por toda a urbe, numa convergência constante de influências. Como a personalidade anglófila de que tanto se orgulham — e que os aproxima mais dos britânicos do que do resto do país, do qual foi independente até à Unificação da Alemanha, em 1871. Ou o espírito comercial de uma cidade que teve sempre como principal motor os negócios – portuários, financeiros, industriais. E a carga multicultural que chega há séculos nos navios, como força de trabalho vinda de todo o globo. De acordo com o gabinete regional de estatística, cerca de 34% da população tem um passado imigrante, proveniente de mais de 180 países diferentes.

Poucos passos distam, por isso, o histórico do moderno, o clássico do revolucionário, os ricos dos pobres, os alemães de todos os outros. E é isso que lhe dá carisma. A maior concentração de milionários da Alemanha convive com um panorama underground vibrante, com a melhor vida nocturna do mundo (segundo um inquérito do Hostelworld publicado no final do ano passado), muita arte urbana e diversos movimentos de contracultura, como o colectivo de Gängerviertel. O Rote Flora terá sido um dos primeiros a surgir, quando em 1989 decidiu ocupar o antigo teatro do século XIX, em protesto contra a decisão de transformá-lo numa novíssima sala para musicais. Hoje, o edifício histórico e o colectivo anarquista que o ocupa são símbolo incontornável do bairro de Sternschanze, com uma constante programação cultural e política. No ano passado, o Rote Flora voltou ao campo mediático ao tornar-se centro nevrálgico dos protestos violentos contra a reunião do G20 que decorria na cidade.

Nos últimos anos, o bairro de Schanze, a alcunha simplificada mais utilizada, tornou-se habitat preferido da cultura alternativa da cidade, com inúmeros bares, pequenas lojas independentes, galerias, lojas de tatuagens, barbearias. E acabou por provar do veneno contraditório que a vaga muitas vezes traz consigo. De bairro alternativo transformou-se em epíteto da gentrificação em Hamburgo, actualmente com as rendas mais altas da cidade. É, no entanto, a zona com a melhor vida nocturna, garantem-nos. Pelo menos para quem quer escapar à confusão da red light district da cidade. Mas já lá vamos.

É que em Schulterblatt, uma das principais ruas de Schanze, sucedem-se os bares e os restaurantes de todas as nacionalidades. Incluindo portuguesa. Hamburgo tem uma grande comunidade emigrante — tão grande que dá nome (e alimento) ao Bairro Português, que não chegámos a visitar. Em poucos minutos, tropeçamos em vários espaços de sabor luso. Ao terceiro não resistimos e entramos para um café. É José Lopes quem nos recebe no Bairro Alto. Veio de Braga há 44 anos para se juntar ao pai, então empregado no porto da cidade. Tinha 14 anos. A mulher, também de Braga, conheceu-a cá e hoje é o filho que protagoniza o regresso da família a Portugal, onde está a tirar uma especialização académica na área de Farmácia. Mas o Bairro Português, diz, já não é a mesma coisa. Sobrevivem muitos restaurantes (só o proprietário deste espaço tem quatro no quarteirão luso junto ao rio), mas o convívio entre emigrantes mal se mantém. “A maioria já não vive no bairro, já não há essa união entre as pessoas”, lamenta.

Foto
Hamburg.de/Matias Boem

Um pouco mais abaixo, em direcção ao Elba, fica o bairro mais bairro da cidade. St. Pauli desenha-se em torno da Reeperbahn, a red light district de Hamburgo. Atravessamo-la de dia, depois de noite, e é impossível ficar indiferente. Impressiona pelas dimensões de larga avenida, com o trânsito automóvel corriqueiro de grande cidade, depois pela profusão de néones e painéis luminosos nas fachadas. Tudo se anuncia sem grandes rodeios. Bares de strip, bordéis, bares, discotecas, salas de espectáculos. Há diversão para todos os gostos no bairro onde os Beatles, ainda miúdos e desconhecidos, deram os primeiros passos no início da década de 1960. A zona é conhecida como “a milha da liberdade”. Uma das ruas principais, inclusive, chama-se Große Freiheit. Mas a “grande liberdade” que lhe dá nome não alude à tríade de sexo, drogas e rock ‘n roll que o cenário faz antecipar. Antes à liberdade religiosa.

É que durante o século XVII, enquanto parte do bairro era considerado terra de ninguém, esquecido para lá das muralhas de Hamburgo (entretanto demolidas para expandir a cidade, mas cujo traçado é relembrado pela geografia do parque Spielplatz Planten Un Blomen); a outra parte pertencia a Altona, então cidade independente sob o reinado dinamarquês (agora parte de Hamburgo). Contra o rigor religioso protestante de Hamburgo, o governo de Altona respondeu com a instituição de liberdade religiosa, de forma a atrair católicos, refugiados e outras minorias, que viriam contribuir para o desenvolvimento económico da cidade. Ironia do destino, é em Große Freiheit, actualmente uma das ruas mais “pecaminosas” de Hamburgo, que fica a primeira igreja católica construída na região depois da Reforma Protestante, hoje em dia com uma das mais antigas comunidades católicas do Norte da Alemanha.

Por volta da mesma altura, Hamburgo empurrava para terra de ninguém todos os ofícios e indústrias de maus odores ou ruídos em sobejo, pestilentos ou duros ao olhar. A arte de fazer cordas e cabos para os navios deu nome à Reeperbahn, por exemplo. E atrás dos homens rudes e dos marinheiros famintos veio depressa todo o tipo de entretenimentos. Reza a lenda que sair de Hamburgo era gratuito, mas pagava-se ao voltar. Era sabido o que se ia fazer para lá da muralha. Havia que taxar a indecência cometida.

Foto
Hamburg.de/Sven Schwarze

No porto, uma cidade nasce do zero

Do cais de Landungsbrücken, aos pés de St. Pauli, sai quase tudo o que é passeio pelo rio Elba. Não muito longe, todos os domingos começam ao raiar do dia no mercado de peixe, entre os leilões na histórica lota, as bancas de roupa e de bugigangas e as roulottes de comida. Conta-nos Guido que a atmosfera é sui generis, unindo velhotes e vizinhos às compras, muitos turistas e jovens bêbados que cumprem a tradição de aqui terminar a noitada, com um reforço para o estômago. Partimos sábado ao final da tarde, por isso é o cenário imaginado que vislumbramos ao passar pelo Fischauktionshalle, entre a silhueta de um submarino museu e dois enormes navios ancorados nas docas.

Pouco depois, já deslizamos junto à Elbphilharmonie, em direcção aos canais que circulam por Speicherstadt, o “maior bairro de armazéns do mundo”. Classificado como Património Mundial pela UNESCO em 2015, o quarteirão de edifícios em tijolo foi erguido em 1883 para armazenar grande parte das mercadorias que chegavam ao porto, então zona livre de impostos. Actualmente alberga museus, um hotel, restaurantes e muitos escritórios. É aqui que primeiro reparamos na quantidade de pontes que atravessam os cursos de água. Um número que o orgulho local há-de repetir a cada novo encontro: 2498, “mais do que Veneza, Londres e Amesterdão juntas”.

Foto
Hamburg.de/Ingo Boelter

Aqui e ali, nova curva líquida e atrás das fachadas centenárias espreitam edifícios modernos, de arquitectura por vezes extravagante. Aproximamo-nos de HafenCity, o novo projecto megalómano da cidade. Nos braços de terreno entretanto abandonados pelas operações portuárias está a nascer um novo bairro. Os planos incluem infra-estruturas desenhadas por arquitectos de renome internacional, como Rem Koolhaas e Renzo Piano. Além da Elbphilharmonie, cuja localização acaba por marcar a entrada na nova “cidade portuária”. Os bairros adjacentes já estão terminados, mas “o maior projecto de desenvolvimento urbano da Europa” ainda tem muito por onde crescer. Numa área onde caberiam 220 campos de futebol, estão a surgir espaços para habitação, restauração, comércio, escritórios e jardins. Estima-se que, no final, possam aqui residir cerca de 12 mil pessoas e trabalhar outras 40 mil. O que já ninguém se atreve a estimar é quando estará concluído o projecto, deixando o horizonte para lá de 2030.

A ferida aberta pela Elbphilharmonie pode ter sarado à superfície mas a cicatriz demora a desaparecer. Em 2015, num referendo municipal para decidir se Hamburgo devia candidatar-se a ser anfitriã dos Jogos Olímpicos de 2024, o “não” venceu com 52% dos votos. Três anos depois, ainda não há planos para o futuro de Kleiner Grasbrook, a ilha portuária que planeavam transformar em cidade olímpica, convertendo-a depois em parte residencial de Hamburgo. “Fala-se na construção de uma nova ponte, com o metro a passar por lá, e alargar o projecto de HafenCity, mas isso será para daqui a muito tempo”, aponta o guia Klaus quando passamos ao largo da ilha, a caminho de Rothenburgsort.

Foto
Hamburg.de/Roberto Hegeler

De marginalizados a bairros cool

Agora que o centro de Hamburgo está amplamente explorado — e sem alojamento disponível para quem não consegue pagar as rendas de valores proibitivos —, onde vão surgir os novos bairroscool e alternativos da cidade? As apostas parecem apontar todas para sudeste. Entre antigas zonas de indústria e logística portuária e bairros operários de má fama, há uma área enorme, relativamente próxima do centro da cidade, até agora negligenciada. Mas cujo cenário começa a mudar. Começamos em Rothenburgsort, depois descemos até Wilhelmsburg, dois bairros de história semelhante.

É Johanes, guia da Alternative Hamburg e urbanista freelancer, quem nos recebe junto ao pontão Entenwerder 1, em Rothenburgsort. “É a primeira vez que faço uma tour por aqui”, confessa pouco depois, enquanto relata a evolução desta zona apontando múltiplos mapas de um livro que carrega na mochila. Artista urbano nas horas vagas, é sobre o movimento de street art na cidade de que habitualmente fala nas visitas guiadas pelo centro de Hamburgo. E é ele, e alguns dos artistas locais, que inevitavelmente encontra em cada muro do caminho.

Na mochila, traz várias raposas feitas de rodelas de plástico, coladas entre si, com um íman nas costas. Deixa uma num dos pilares da ponte. Dá-nos outra. “A ideia é levar a arte a sítios inesperados, que habitualmente não estão associados a ela, e atrair o olhar das pessoas para lugares aos quais não prestariam atenção”, conta. “Levem-nas para os vossos países, mas não as guardem como souvenir. Não é para colar no frigorífico. Elas pertencem à rua, não em sítios turísticos ou óbvios, mas naqueles para onde ninguém olha.” A raposa matreira é statement político. Como o mural feito por quatro artistas noutro dos pilares: quatro crianças, de gorros, bonés, sweats de caveiras e calças largas, a brincar com balões em forma de coração e de letras douradas que formam a expressão lieb sein — algo como “seja amável”.

Foto
Mara Gonçalves

É que esta zona da cidade, tal como Wilhelmsburg, carrega o estigma dos bairros pobres, onde mora quem não tem como pagar as rendas do centro ou das periferias abastadas. Muitos são emigrantes, a percentagem de crianças e de desempregados é das mais elevadas da cidade e há vários problemas sociais e de falta de infra-estruturas. Mas, aos poucos, estão a surgir novos projectos e há cada vez mais artistas e jovens, principalmente, a mudarem-se para cá. O pontão de Entenwerder 1 é uma das atracções principais de Rothenburgsort. Uma inusitada estrutura dourada atrai todos os olhares, mas, apesar de dar abrigo a exposições e a uma zona de estar, é o contentor ao lado que atrai mais comensais a esta hora da tarde. O estreito café, instalado em 2015, tem um ar moderno e reconfortante, de largas janelas para o rio. Pedimos um cappuccino para aquecer o caminho de Inverno rigoroso e continuamos.

Se não estivesse a chover, podíamos passear com calma pelo jardim que se estende para lá do pontão ou descer até à ilha de Kaltehofe, transformada em parque natural e museu. Mas acabamos por procurar refúgio na Clouds Hill, uma produtora discográfica analógica. Johann Scheerer, 35 anos, abriu aqui o estúdio em 2003 e a editora seis anos depois, unindo as duas faces da produtora indie num edifício que integra ainda um apartamento onde os artistas podem ficar alojados. O ano que Peter Doherty morou aqui resultou no álbum Hamburg Demonstrations, lançado em 2016, e há várias fotografias do artista espalhadas pelos corredores. Cada disco gravado inclui uma versão final digital, mas tudo o resto é analógico, numa parafernália vintage que confere um ambiente místico ao espaço. Uma das consolas de mistura foi encomendada em 1978 por George Martin, icónico produtor dos Beatles, e utilizada na gravação do último álbum de John Lenon, Double Fantasy, dois anos depois.

Foto
Mara Gonçalves

A música tem sido uma das fórmulas utilizadas para atrair gente a estas zonas da cidade. Não só através da festa anual organizada no estúdio da Clouds Hill (em Outubro), mas sobretudo com os festivais de Verão, como Dockville ou 48h Wilhelmsburg. Outra fórmula tem sido protagonizada por entidades municipais, com projectos arquitectónicos realizados pelo International Building Exhibition (IBA) ou os jardins do International Garden Show. Um dos mais interessantes é, porventura, o “bunker energético”. Como saía demasiado caro demoli-lo por completo — tudo o que as tropas britânicas conseguiram foi destruir os pisos interiores com uma explosão no final da Segunda Guerra Mundial — a IBA decidiu adaptá-lo para produzir energias renováveis. Painéis solares, biogás, aparas de madeira e calor residual vindo da indústria vizinha, com capacidade para gerar cerca de 22.500 MW/hora de calor e quase 3.000 MW/hora de electricidade. E um agradável extra: um café com varanda-miradouro no topo, onde retemperamos forças com a cidade e o porto no horizonte.

“Há sete anos, esta era uma ‘no zone’”, conta Max, ao volante de Jolante, uma das carrinhas pão-de-forma que dão corpo aos passeios turísticos da Waterkant. Curiosamente, uma empresa inspirada num conceito semelhante feito em Lisboa, confessa Max, e que apenas faz viagens pelas zonas mais desconhecidas da cidade. O objectivo é mostrar outra faceta de Hamburgo e, neste caso, mostrar um bairro “que se tem desenvolvido” nos últimos anos. Pelas ruas, entre restaurantes de kebabs e lojas chinesas, vêem-se vários cafés modernos, pequenas lojas e projectos culturais. “Há quem diga que vai ser o próximo Schanze”, afirma. Max faz as contas: um metro quadrado custa 13€ em Wilhelmsburg, 50€ em Harbour City e 60€ em Schanze. “Se amas Hamburgo e não consegues pagar mas também não consegues ir embora, tens de arranjar uma solução.”

A Fugas viajou a convite do projecto Come To Hamburg, da Promotion Pool der Hamburger Hotellerie

Sugerir correcção
Ler 1 comentários