As viagens invisíveis do Espiga

Quinta-feira é dia de dar a volta ao mundo sem sair do sofá do Espiga. “Aqui viajamos todas as semanas."

Inês e Hugo viajam todas as semanas no Espiga
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Inês e Hugo viajam todas as semanas no Espiga Nelson Garrido
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Hoje é quinta-feira. É dia de ir a um centro de resgate e reabilitação de elefantes na Tailândia, de visitar um centro de refugiados na Birmânia, de fazer Portugal-Áustria de Vespa ou Ovar-Macau de bicicleta, de viajar sem rede, de viajar ao fundo do mar, de ir à Índia, à Macedónia, às Coreias, ao Sri Lanka, ao México, à Síria, ao Butão, ao Ruanda, Burundi e Uganda. Hoje é dia de ir — sem realmente ir. É dia de dar a volta ao mundo — sem sair do sofá do Espiga, um espaço que se quer intergaláctico.

“Nada garante que Kublai Kan acredite em tudo o que diz Marco Polo ao descrever-lhe as cidades que visitou nas suas missões, mas a verdade é que o imperador dos tártaros continua a ouvir o jovem veneziano com maior atenção e curiosidade do que a qualquer outro seu enviado ou explorador.” Não estamos nas Cidades Invisíveis, de Italo Calvino. Estamos em mais uma das Viagens ao Mundo (sem sair do sofá) (“Vamos na septuagésima oitava, 78; faço sempre a tradução porque o pessoal fica sempre a fazer contas”, diz Inês Viseu), momento semanal em que uma plateia, ávida de preencher um vazio, ouve os relatos de quem conheceu a vastidão ilimitada dos territórios — e agora volta para contar as histórias.

“A coisa”, conta Inês, 30 anos, “começou muito, muito na brincadeira” em Setembro de 2015 com uma pessoa (Ana Cancela) a falar da sua viagem (ao Japão). O Espiga, que abriu em Janeiro do mesmo ano na Rua Clemente Menéres, 65,no Porto, sempre quis ser “multidisciplinar”. “E sempre quis fazer alguma coisa que não fosse muito aborrecido e que não trouxesse pessoas aborrecidas”, descreve a fundadora do Espiga (ESPaço de Imaginação Gosto e Artes) juntamente com Hugo. “Quando as conversas de viagens começaram ninguém sabia que tínhamos jantares, sopas ou tostas. A coisas nem sequer era muito rentável. E de repente a coisa pegou. Não fazíamos ideia que ia pegar.” O serão realiza-se há 78 semanas com interrupções em Dezembro, Julho e Agosto. “Nesses meses a malta está a viajar para depois vir cá contar as viagens”, sublinha Hugo Moura, 36 anos.

O formato de apresentação é “completamente livre”. “Não somos rígidos. Por isso é que as pessoas se sentem tão à vontade”, justifica Inês, que coloca à disposição dos oradores uma tela, um projector, um computador, colunas e microfones. Quem chega, monta o seu palco, apresenta-se e... viaja. “Numa das últimas apresentações, com o Gustavo Carona, a sala estava completamente cheia, cerca de 150 pessoas. No final, uma miúda veio ter comigo e disse que nunca se tinha sentido tão bem num sítio com tanta gente. Quem vem são pessoas muito solidárias, com um forte espírito de partilha”, sugere Inês que, 78 sessões depois, sabe que este momento semanal formou “uma pequenina comunidade”. São “amigos da casa”. “Despedimo-nos de mais de metade com dois beijinhos.”

Já passou pelo Espiga um inglês (Tom Thumb) que transformou a sua viagem de boleia até à Índia numa performance (“Apenas pediu um foco apontado para ele”) e um português (David Freitas) que contou as suas aventuras na Tailândia e Camboja em formato “standup comedy”. “Não haver regras permite que cada um siga o que acha mais fixe”, anota o casal, que, um ano e meio depois do início destas sessões, também teve direito a sair do sofá e a pegar no microfone para apresentar uma viagem à Roménia, Sérvia e Bulgária.

O momento quinta-feira “é muito lindo, mas muito doloroso”. Inês passa a explicar: “No dia seguinte fica-se com muita vontade de viajar — e é dia de arrumar a casa. Ficas com vontade de seres tu a viver aquelas experiências.” Hugo subscreve: “Apetece sair porta fora e ir à procura. É difícil conciliar tendo a porta aberta, aliar a vontade de viajar e gerir um negócio.” A sessão termina mais ou menos pela 1h. O casal limpa as mesas e deixa o resto das arrumações para o dia seguinte, dia de ressaca de viagens. “Já aconteceu de no dia seguinte imprimirmos um mapa. E vamos pensando...”, exclama Hugo — aconteceu por exemplo quando Rafael Polónia, fundador da Landescape, falou do Irão.

“Aqui viajamos todas as semanas”, diz Inês, que na verdade nunca viajou muito. “Fomos viajando, mas muito aqui por perto. Havia sempre o gosto, mas não havia o ímpeto de ir já, algo que agora sentimos e que foi sendo refinado durante os últimos anos”, assume Hugo. “Precisamos destes três anos para consolidar. Vamos de férias, fechamos, mas as contas continuam presentes.”

Ele tem formação em Arquitectura. Ela em Farmácia. Têm em comum a Fotografia — e alguma loucura. “Precisava de alguém tão louco quanto eu”, diz ele. “Ambos temos muita vontade de fazer coisas”, diz ela. Decidiram ver espaços e surgiu “esta caverna”, um armazém de móveis desde os anos 1970. “Chovia [cá] dentro”, recorda Hugo. “Achei que era espectacular. A Inês achou que era um buraco. ‘Isto tem muito potencial!’” “Sabes quantas linhas paralelas tem este espaço? Nenhuma! É o espaço mais torto que existe na cidade!”, descreve Inês. “É um pipo. estreito de um lado, estreito ao fundo e mais largo a meio. A planta parece um rectângulo, mas não é”, traça Hugo. “Fomos completamente inconscientes, mas correu bem”, admitem perante um espaço com um “conceito diferente de mercado”, “sem turistas”, “sem turnos nem rotatividade de mesas”, “sem correr com as pessoas à vassourada, sem despachar pessoas”.

O Espiga, que esteve para ser O Pátio da Clementina ou Sapato (“Que lido ao contrário seria O Tapas, muito bom para trocadilhos do menu do restaurante"), já tem uma livraria de viagens e tem que ser um espaço “dinâmico”, orgânico como um planisfério de origami (está na parede e é da responsabilidade do Clube de Origami do Porto). “Gostamos muito do Espiga, estamos muito ligados ao espaço. Mas não queremos que ele nos tire toda a liberdade. Estamos à procura do equilíbrio para termos disponibilidade para maluqueiras”, anota Hugo (maluqueiras = viagens).

Nunca mais é quinta-feira.

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