“Aqui não há grito”
Desemprego, falta de dinheiro — e um apartamento, onde as luzes se apagam, que se comporta com uma família como nos filmes de terror. Colo é mais uma gloriosa produção do “Portugal da troika”? Há mais assombro do que certeza aqui. É assim que Teresa Villaverde se reposiciona como cineasta.
Colo é vagaroso a negociar a entrada do cinema na vida das suas personagens, um pai (João Pedro Vaz), uma mãe (Beatriz Batarda) e uma filha (Alice Albergaria Borges).Toca-nos esta decisão de um filme se recusar a sentenciar sobre... , a assumida dificuldade de um filme em ter certeza sobre o que se passa. O que é que se passa, afinal, o que é que lhes aconteceu, ao pai, à mãe e à filha?
Para facilitar, dizemos que é “a crise”: desemprego, falta de dinheiro, corte de electricidade — e um apartamento, onde as luzes se apagam, que se comporta com os moradores como as casas dos filmes de terror: expulsa-os, sobrevive-lhes.
Afinal, qual é a crise de que se fala aqui? Colo é, como As Mil e uma Noites, de Miguel Gomes, como São Jorge, de Marco Martins ou como Fábrica de Nada, de Pedro Pinho, mais uma gloriosa produção do Portugal da crise?
“O que acontece àquela família é mais do que alguém perder o trabalho ou a casa, como aconteceu a muitas pessoas”, diz-nos Teresa Villaverde, realizadora, 51 anos, nesta entrevista. “Agora que supostamente a crise acabou, para mim este filme é mais pertinente ainda. Assim como nos afundámos abruptamente, de repente, como grupo, ficámos outra vez felizes, com esperança.”
Colo — é esta a sua singularidade — insinua-se como dúvida e não como filme sobre uma época. Se fosse assim, não navegaria às escuras como o faz, demorando até permitir que o cinema dite o destino das personagens e que transborde à custa das vidas das personagens. Isto, que é muito bonito, é um reposicionamento da realizadora de Três Irmãos (1994) e de Os Mutantes (1998).
Já se disse do seu filme que é opaco, como se não se visse nada a acontecer — ou como se demorasse tempo a acontecer. É disso que gosto: a forma como olha para a ficção com uma distância de documentarista — como se documentasse a ficção, sem impor o cinema às personagens ou aos acontecimentos. É uma forma de, como realizadora, se reposicionar: neste filme coloca-se de forma diferente perante figuras que podiam estar ou estiveram mesmo já em filmes seus de outros tempos, Três Irmãos (1994) ou Os Mutantes (1998).
Reparei depois que tinha sido assim. A diferença entre esta forma de fazer e a outra que já fiz é que nos Mutantes é como se eu, autora, estivesse do lado das personagens, como se fosse uma delas. Havia naqueles filmes uma ideia de denúncia, de quase grito, e eu participava nisso, estava dentro. O que se nota de diferente aqui é que, desde logo, não há grito. Há qualquer coisa ao longe, que vem apenas dos mais jovens.
Quando fazia a denúncia, nos outros filmes, estava a falar de coisas que as pessoas não conheciam. Aqui não estou a dar novidades de nada a ninguém, não estou a falar de nada que não saibamos. Também por isso a minha relação com o filmado é eu ser uma observadora, daquilo e de nós próprios. Não há revelações.
Curioso que diga isso: se pensarmos em dois filmes recentes de cineastas portugueses, a trilogia de Miguel Gomes As Mil e uma Noites (2015) e São Jorge (2016), de Marco Martins, neles foi considerado necessário colocar no genérico informação sobre o que os tinha produzido: o Portugal da “crise”. Já no seu filme não há legendas, a crise não está em diálogo algum, não há um plano “a falar sobre...” É a história de uma família que se desagrega — filmada como se não soubéssemos porquê.
Ainda hoje não sabemos porquê. O que acontece àquela família é mais do que alguém perder o trabalho ou a casa, como aconteceu a muitas pessoas. Agora que supostamente a crise acabou, para mim este filme é mais pertinente ainda. Assim como nos afundámos abruptamente, de repente, como grupo, ficámos outra vez felizes, com esperança. É muito estranho como uma coisa e outra foram tão rápidas. Quando fiz o filme não sabia que ia tudo melhorar de repente. Mas o facto de tudo ter começado a alterar-se tão rapidamente — e muitas pessoas não resolveram ainda os seus problemas, não arranjaram trabalho, houve tensões dentro das casas, divórcios, enfim, coisas que ainda vamos saber mais para a frente...
... significa que a crise continua, apesar de ter acabado, está connosco, é isso?
Sim, se calhar a crise profunda já vinha de antes. Não é muito politicamente correcto dizer o que vou dizer mas vou fazê-lo: é gravíssimo perder-se o emprego, a casa, mas se não tivéssemos estado já antes numa crise mais profunda, crise de muitas outras coisas, se calhar teríamos aguentado com outra força sem essa não esperança de que acabou tudo. É muito importante essa ideia no ser humano: mesmo quando há uma guerra, debaixo dos escombros e das bombas, haver esperança, senão as pessoas não se mexem, não vão buscar água. Devemos interrogar-nos porque nos fomos tão abaixo. É uma pergunta. Não sei responder.
Conheço a história de uma rapariga, classe média alta, ganhava bastante bem, houve um corte nos orçamentos, o pai e a mãe perderam o trabalho, ela teve de deixar de fazer uma série de coisas. Por exemplo, deixou de comer no restaurante a que ia com as amigas, passou a ter de comer na cantina da escola — o que não é o fim do mundo. O que aconteceu? Tinha vergonha disso, e não comia nem no restaurante nem na cantina. Ficou doente, desmaiava. Dizia-se: “Pois é, a crise..” Mas se pensarmos temos de dizer: “Mas crise de quê, qual é a crise, afinal, de que falamos?”
A crise anterior à crise...
Com certeza. Tudo o que aconteceu foi muito estranho e estranho também é tudo se ter evaporado. Temos que pensar sobre isto, tentar compreender o que aconteceu. E não estou a falar de Economia ou de Finanças. Estou a falar de pessoas. Se não crescermos como pessoas, daqui a anos pode ir tudo abaixo de novo. Houve quem perdesse as suas coisas, houve pessoas que viveram aterradas com medo que chegasse a elas, já estavam a sofrer por antecipação. E havia pouca reacção, pouca revolta, houve depressão imediata, rápida. Em meses ficámos assim. Não é exagero dizer que as pessoas mudaram de cara...
Uma das coisas que percorre Colo é, precisamente, o não reconhecimento. Entre marido e mulher, por exemplo. Daí chega-se ao limite, o medo do desaparecimento: um e outro em alturas diferentes do filme chegam a casa e pensam que o outro desapareceu. A personagem de Beatriz Batarda diz às tantas que não sabe o que (lhe) está a acontecer, precisa de sair dali para não ficar estranha. Tudo o que se passa, entre este casal, nesta casa, está cheio de silêncios vividos. Queria que recuasse ao momento em que fez o filme. Houve recolha de histórias, testemunhos, pesquisa?
Houve, mas nos outros filmes — Mutantes, Transe (2006) — houve muito mais. Na realidade, não foi preciso muito: sentia-se. Considero que o pai é a personagem central do filme, não sei se toda a gente acha isso, mas sinto assim, e foi a primeira vez que escrevi [a personagem de] um homem. E foi-me fácil entrar na pele dele. Não foi preciso grande investigação porque para a parte humana, dos sentimentos e das emoções, não era preciso andar a ver estatísticas. Ainda fui a lugares de distribuição de comida, ainda falei com pessoas dessas organizações, mas o que me marcou muito foi uma conversa com um psiquiatra: dizia-me que as pessoas chegavam lá e ele dava-lhes antidepressivos sabendo que não ia resolver nada.
O que está em causa é algo de mais profundo e difuso.
O complicado disso é que estamos sempre a repetir o que parecem ser lugares-comuns. Eu própria nunca gostei muito de ouvir falar em “crise de valores” e “crise da família”.
A personagem do pai é a figura em perda - a personagem da Beatriz Batarda é o sustentáculo. Porquê aquela figura?
Talvez tenha pensado que nesta sociedade ainda é mais grave numa família um homem perder o trabalho do que uma mulher: a vergonha perante os outros. Foi intuitivo parar na ideia de que o homem era a personagem em desequilíbrio. Foi bastante fácil identificar-me com ele. É difícil de perceber, mas o lado depressivo, meio sonâmbulo, que ele tem, é algo que percebo bem.
Se tentarmos imaginar como é que ele era antes, quando tinha trabalho, nem percebemos bem o que fazia. Mas não interessa, porque infelizmente uma das crises da nossa sociedade é o facto de ser raro as pessoas fazerem o que gostam e querem. Só isso já é um problema gravíssimo. Estamos sempre a esquecer-nos de juntar os detalhes todos, tudo o que já empobrece a nossa vida — quando perdemos um emprego, parece que perdemos tudo, o que é um contrassenso porque começámos já a perder quando fomos fazer algo que não era o nosso sonho.
Colo não é um filme de época. Daqui a vinte anos veremos um filme sobre uma crise, aquela que permanece, não a que acabou.
Que permanece e sobre a qual temos muito que falar. Porque é que aceitamos viver assim?
Beatriz Batarda e João Pedro Vaz: escreveu para eles?
Não. Não pensei logo na Batarda porque a Beatriz na minha cabeça tinha ficado cristalizada no que fizemos antes [Cisne, 2011]. Não foi imediato chamá-la para uma coisa tão diferente. Só depois é que me pareceu irremediável — mas não escrevi a pensar nela. Também não escrevi a pensar no João Pedro Vaz. Andei à procura de um actor diferente dos actores com quem costumava trabalhar, até por aquilo que disse quando falou na distância, que é também a distância física da câmara: não queria um actor de grande plano, queria um actor que pudesse filmar de corpo inteiro e que soubesse sentir o que é o espaço, uma sala — o que é atravessar um espaço. Ele é sobretudo actor de teatro e era boa ideia ir buscar alguém que soubesse dar dez passos e isso ter logo ressonância. Um actor que viesse dali podia-me ajudar. Mas não escrevi a pensar nele. Hoje — é sempre assim quando as coisas correm bem — não consigo imaginar outras pessoas.
Ao lado deles, havia não profissionais. Têm de se gerar energias diferentes no trabalho?
Não. Não gosto nada de fazer ensaios antes das rodagens. Como tínhamos uma casa e a casa tinha importância no filme, fiz algo que não costumo fazer: um jantar só com eles, eu era a intrusa, eles cozinhavam, a Beatriz, a Alice [Albergaria Borges, intérprete de Marta, a filha]. E jantámos. Foi poucos dias antes de começarmos a filmar. Ajudou bastante. Há muita coisa do quarto da rapariga que vem do quarto da Alice, e ela ajudou na decoração, até nas gavetas havia coisas dela. As pessoas adaptam-se depressa. Têm uma capacidade gigante de não ver as diferenças. A Alice andava sempre com o guião e a anotar, coisas que sozinha ia também trabalhando. O João Pedro... o facto de não ter muita experiência de cinema, que é um mecanismo diferente do teatro, fez com que viesse habituado a trabalhar o texto e as personagens. Eu não gosto muito disso, e levámos dois ou três dias a encaixar. É complicado quando se tem no mesmo plano pessoas diferentes. Demora a acertar. Neste filme foi mais difícil porque apesar de tudo, e ao contrário do que possa parecer, num grande plano o realizador tem mais controle, embora seja a cara de outra pessoa. Pode-se controlar pormenores. Um actor visto de corpo inteiro é mais complicado, é ele a dar as coisas. Ora, com actores diferentes é necessário fazer acertos, falando da situação, do que está a acontecer ali com aquelas pessoas — ignoro o método de cada um, falo igual para todos.
Como alguém disse, a partir do momento em que os actores estão escolhidos, a direcção está feita. Não te podes é enganar na escolha.
E a casa? A família perde-a no final, mas pensando retrospectivamente já está nas cenas de início que a casa não lhe pertence, pai, mãe e filha movimentam-se nela como estranhos — está tudo logo, afinal, na primeira sequência.
A casa era um apartamento habitado, nos Olivais. Tirámos tudo o que lá estava, os exteriores são os exteriores da própria casa. Há filmes que são abençoados. Eu tinha pensado a cena das janelas vistas de fora...
Com os pais numa assoalhada, a filha na outra...
... sim, tinha isso escrito mas estava preocupada como fazer. Se estava a filmar num 10º andar e não tinha um prédio em frente com a mesma altura, não podia fazer esse plano. Mas havia mesmo um prédio em frente igual. Mesmo os planos feitos através da janela sobre o exterior: não mandámos tirar nada, nem carros, nem pessoas. Era assim já.
Pintámos a casa. Tem uma respiração própria, parece quase um animal. Ajuda logo aquele travelling, aquele desencontro entre o casal, um está e o outro não, e mesmo antes disso aquele momento em que a filha chama pelo pai e ele não está. O filme introduz logo esse mistério, aquela cor, aquele travelling pelo corredor: uma pessoa sozinha em casa, meio lusco-fusco, à procura de algo. A casa, se pensarmos nisso, começa a existir desde o princípio.
O casal: sentimos que algumas coisas já não existem na relação mas há ainda ternura. De tal maneira que para a filha a existência do pai e da mãe é um factor de exclusão — aqueles planos em que ela os observa da janela, ela em cima e eles em baixo, ou aquele momento em que ela exclama: “Então e eu?”
Isso é engraçado, porque há anos que observo famílias de três pessoas. Nas férias de Verão, num restaurante, está o pai, a mãe e o adolescente. Desde sempre que me faz impressão — na minha família somos três irmãos, isso nunca se deu connosco, mas sinto que o adolescente está sempre sozinho. Não há relação com os pais, não está sequer a falar com eles — observo isso há muito. Se eles fossem quatro, por exemplo, esta história seria diferente.
As famílias são cada vez mais pequenas. Isso que diz é verdade: a relação entre um pai e uma mãe nunca vai permitir o acesso ao filho. Mas é paradoxal, porque naquele plano da janela, vista de fora, o que os separa fisicamente é muito estreito.
Concordo quando diz que não é um filme de época porque realmente tem essa coisa estranha das famílias: as pessoas estão afastadas, não sabem nada da intimidade de cada uma mas vivem coladas umas às outras. Ou seja, estão entre o afastamento e a promiscuidade. Algo que se sente menos se as famílias forem em número par. Ou então em famílias monoparentais.
A sequência da luz cortada, da refeição às escuras, é uma grande ideia: sendo muito concreta, é a figuração de um eclipse. “Como é que isto nos aconteceu?”, alguém pergunta. O que é tremendo é que as pessoas se conseguem adaptar a tudo.
É que eles reagem nos primeiros tempos como se aquilo fosse um teatro: vamos brincar à vida...
Como diz a mãe: “vamos fazer um jantar bom”...
... sim, não têm opção
O que essa sequência tem é que funciona como um desenrolar concreto, até previsível, da degradação familiar, com as decisões pragmáticas sobre o que fazer, mas ao mesmo tempo tem ressonâncias metafísicas. Algo de definitivo se começa a apagar ali.
Isso estava escrito, mas quando se filma ou isso se expande ou não. Cortaram a luz, e como eles não têm relação com o exterior, parece que é uma entidade superior que agiu.
Desde o genérico que o filme marca uma fronteira entre a paisagem urbana, sempre vista ou imaginada de interiores, e um apelo, como linha de fuga, da natureza. Que se vai transformando ao longo do filme. Há um momento em que algo muda mesmo: depois do banho do pai no mar, há um travelling, aparecem flores, uma exuberância cromática rasga o ecrã. A partir daí o filme não só ouve outros apelos do exterior, como a partir daí o cinema pode intervir sem estar a ditar o destino das personagens. Há mais movimentos de câmara, por exemplo.
Procurei nesse travelling trazer a bondade, a beleza às personagens. Como para lembrar, ao espectador também, que há ainda pessoas, pistas, que podemos agarrar. O pai quer água, dão-lhe água. Depois, as raparigas encontram o pescador. É uma lembrança de como as coisas ainda podem ser. E o cinema, sim, vai atrás disso.
Depois dessa sequência as coisas aceleram-se. Se pensarmos no que depois acontece: Beatriz Batarda, a mãe, desaparece, João Pedro Vaz, o pai, arranja uma outra filha [Clara Jost], que a avó [Simone de Oliveira] toma como a sua verdadeira neta, e esta [Alice Albergaria Borges] fecha-se numa casinha no bosque.
[risos] mas é mesmo isso...
Podia ser inverosímil aqui, fazendo toda a lógica em Os Mutantes.
Há ali uma viragem importante, quando a personagem do pai vai ter com o amigo [Ricardo Aibéo]: é uma humilhação, é violento. Naquela praia, abandonado, ou morria ali ou se não morre tem que haver alguma coisa. O mar é libertador. Começa ali algo, sim. Há coisas que faço que não são cem por cento conscientes. Para mim ele bate no chão, mas é “salvo”, pelo menos momentaneamente, pela natureza e pela bondade das pessoas. É-lhe dado uma respiração, e ele quer retribuir, fazendo algo de meio louco, como um santo.
Plano final: uma adolescente que se fecha numa casa, às escuras. O que é isso?
Ela precisa de um momento de pausa, precisa de ir parar a um momento de nada. É dia, fecha as portadas e fica às escuras para dormir. É quase uma vontade de suspender o tempo. O filme acaba num tempo suspenso: não vamos dali para lado nenhum.
É por isso aquele movimento de câmara, que se aproxima da casa e depois recua, decidindo não prosseguir? Porquê dessa forma?
Porque não pode explicar. Porque não sabemos o que é aquilo. Eu, câmara de cinema, estou igual a toda a gente.
Se fosse nos Mutantes continuaria a avançar...
Sim, provavelmente. Aqui não.