Desta vez, nas eleições italianas, a “realidade exagerou”
As eleições italianas trouxeram uma novidade: os partidos anti-sistema, o Movimento 5 Estrelas e a Liga ultrapassaram a barreira dos 50% dos votos. Não será possível formar um governo sem pelo menos um deles. A conjugação maioritária de dois partidos antiglobalização é um fenómeno novo na Europa.
Os analistas estão habituados às “emoções italianas”, ao alarmismo político, às “ressurreições” de Berlusconi ou às comédias de Beppe Grillo, mas, desta vez, “a realidade exagerou”. Nas eleições de domingo, os italianos ultrapassaram várias “linhas vermelhas”. Os partidos anti-sistema, o Movimento 5 Estrelas (M5S) e a Liga somaram mais de 50% dos votos. Representam duas opções de um populismo antiglobalização e eurocéptico, embora concorrentes e com relações até conflituais. Nada ficará como dantes.
O que restava do bipolarismo — centro-esquerda e centro-direita — desmoronou-se e, com ele, as personagens que o encarnavam, Matteo Renzi e o Partido Democrático (PD), Silvio Berlusconi e a Força Itália (FI). Emergem como vencedores políticos Luigi di Maio, do M5S, e Matteo Salvini, da Liga, o “Le Pen italiano”.
A primeira consequência “matemática” dos resultados é que nenhuma maioria nem nenhum governo podem ser formados sem a participação de, pelo menos, um destes dois partidos. Os “cinco estrelas” parecem a caminho do poder, com vantagem sobre Salvini. A repetição de eleições não é o cenário favorito dos vencidos, que sabem que se arriscariam a um descalabro maior.
“No domingo, 4 de Março, acabou o mundo da política italiana que conhecemos nos últimos 20 anos”, sublinha Luciano Fontana, director do Corriere della Sera. “As divisões entre esquerda e direita quase desaparecem nas urnas.” O PD desce a um patamar inédito, abaixo dos 20%. Berlusconi perde a chefia do centro-direita a favor de Salvini, o seu aliado “menor”.
Mudou a geografia eleitoral. Em nome de temas como “a revolta fiscal, a imigração e a segurança”, a Liga consolida o seu domínio no Norte e penetra no Sul. Mas a grande novidade é a conquista do Sul, com números esmagadores, pelo M5S, contra Berlusconi e os caciques tradicionais. O PD fica limitado à Toscânia, perdendo a maioria dos seus feudos históricos no Centro.
Inquéritos
Antes de voltar à cena política, passemos os olhos por alguns inquéritos. O último estudo do instituto Censis, sobre a situação social do país, começa por frisar: “Há retoma, mas cresce na Itália o rancor.” Persistem os males: o declínio demográfico, a pobreza do capital humano imigrado e a polarização do emprego que penaliza a ex-classe média”.
O medo da despromoção é o novo “fantasma social”: 87% dos membros de grupos populares pensam que é difícil subir na escala social, tal como 83,5% da classe média e mesmo 71,4% nos grupos prósperos; e pensam que é igualmente fácil a despromoção. A imigração provoca sentimentos negativos em 59% dos italianos.
A crítica da política é devastadora: 84% não têm confiança nos partidos, 78% no Governo, 76% no Parlamento. E 60% dizem-se insatisfeitos com o funcionamento da democracia.
Mas a moeda tem outra face: 78,2% dizem-se “muito ou bastante satisfeitos” com a sua vida. “Depois dos anos de severa restrição dos consumos, volta o primado do estilo de vida e do bem-estar subjectivo, da estética aos tempos livres.” Entre 2013 e 2016, a despesa das famílias cresceu 4% em termos reais.
Passemos a um inquérito da confiança nos governantes, segundo as análises mensais do instituto Demos & Pi. Surpreende o grau de confiança no Governo de Paolo Gentiloni, do PD: passou de 41%, em Janeiro, para 45% em Fevereiro. Gentiloni é o político mais bem cotado na Itália, com uma taxa de aprovação de 47%, acima de Di Maio (36), Salvini (33), Renzi (31) ou Berlusconi (28).
Que conclusões tirar? Estes dados exigiriam uma análise muito cuidada. Mas não explicam o que se passou nas eleições. Antes complicam as interpretações.
“O Ohio de Trump”
No Sul, o M5S obteve uma vitória espectacular. Para o jornalista Pao-lo Bricco, do Il Sole 24 Ore, o que aqui está em causa é “o fim da era do bem-estar” que estava associada à política de intenso investimento público, posta em causa pelo declínio da despesa pública. Há um desemprego maciço. “O Sul do Cinco Estrelas é o Ohio de Trump.”
O seu programa económico, sobretudo a promessa do “rendimento de cidadania” universal — 780 euros por mês — teve uma enorme ressonância. Mas a sua mensagem foi mais longe: “A revolta contra a elite, que representa o fio vermelho da onda populista do mundo ocidental, assumiu no nosso Mezzogiorno [Sul] o perfil de um voto negado ao político nacional com raízes locais, o administrador público de longo curso dividido entre Roma e o seu território.”
No Norte, é antiga a implantação da Liga. A inovação de Salvini foi a passagem do regionalismo “independentista” de Umberto Bossi para uma linha análoga à da Frente Nacional francesa, assente nos temas fiscais, na imigração e no eurocepticismo. Berlusconi escolheu o seu aliado tradicional para, depois das eleições, o deixar cair a favor de uma “grande coligação” com o PD, o que lhe permitiria permanecer como árbitro da política italiana. A “manobra” terá sido excessivamente visível. No total, o centro-direita progrediu apenas dois pontos. E Berlusconi perdeu o domínio do Norte para a Liga.
A analista Flavia Perina acrescenta outro factor: “A vitória de Salvini tem outras razões. (...) A tenácia com que Berlusconi defendeu a sua liderança, recusando acelerar o processo natural da sua sucessão, acabou por se transformar num bumerangue.”
Na esquerda
O PD passou a ser um partido em risco. A “demissão suspensa” de Renzi abre um processo de confronto interno que começa no debate sobre a sua relação com o M5S. Renzi opõe-se categoricamente. Seria naturalmente vantajoso passar para a oposição. Mas será possível? Muitas figuras da esquerda apostam na inevitabilidade de “conversar” com o M5S, “a força mais dinâmica da Itália”, de modo a tentar integrá-la no “sistema”. É uma longa história para o futuro.
Mais do que as longas manobras para constituição de um governo, importa repensar o que está a suceder na Europa. Os quadros tradicionais de interpretação do populismo estão a falhar. O actual fenómeno da antipolítica tem as principais raízes na “Europa do protesto” contra os efeitos da globalização lançada após o fim da Guerra Fria. É o que sabemos. E é muito pouco.