Itália: museu ou laboratório?
Que fique claro: na inovação política, a Itália não pede meças a ninguém. Não pode, por isso, espantar que, para o bem e para o mal, a Itália tome a dianteira em algumas experiências.
1. Na Europa em geral e também aqui em Portugal, olha-se para a Itália mais como um museu do que como um laboratório. Nas eleições italianas do passado domingo há, sem dúvida, notas de museu, mas há também pautas de laboratório.
Nestas eleições, à boa maneira do museu, confirmam-se algumas constantes históricas: a inexistência de tendências maioritárias claras, capazes de assegurar estabilidade governativa; a possibilidade de todo o tipo de transacções políticas, indo quase de um canto ao outro do espectro político; a entrega nas mãos do Presidente da República da chave da solução política; a emergência da tentação populista.
Descendo ao detalhe, nem o populismo do Cinco Estrelas de Di Maio-Grillo, nem o bloco de centro-direita, nem o bloco de centro esquerda conseguem uma maioria absoluta ou perto disso. Essa é, desde 1947, a tradição italiana: no dia seguinte às eleições, não há soluções de governo prontas a servir. A divisão do eleitorado, por vezes no limite da fragmentação, é crónica. E tem frequentemente uma translúcida distribuição territorial, que espelha as diferenças óbvias de desenvolvimento, mas também a manifesta juventude do Estado italiano (só criado na segunda metade do século XIX). Desta feita, a clivagem regional é clara: o norte está com o bloco de centro-direita, o sul está com o populismo do Cinco Estrelas e sobejam umas ilhas no centro-norte e no extremo-norte que estão com o centro-esquerda.
Contados os votos, também é da praxe que todas as alianças sejam equacionáveis. A única que saiu frustrada – de longe, a mais ansiada por Bruxelas – é a que documenta a ubíqua falência dos partidos centrais: uma aliança entre os democratas de Renzi e a Força Itália de Berlusconi (saindo ambos os partidos do espartilho das coligações em que concorreram). Não têm deputados para isso, com a agravante de o partido de Berlusconi ter ficado abaixo da Liga de Salvini, o complica estas e muitas outras contas. Pode talvez haver uma coligação das duas coligações de centro-esquerda e centro-direita (embora Renzi e os seus próximos queiram, imitando a posição original do SPD de Schulz, que o Partido Democrático fique na oposição). O grande risco será portanto a coligação entre o Cinco Estrelas e a Liga (saltando esta da coligação de centro-direita), que juntos conseguem ter maioria de deputados nas duas câmaras do Parlamento. Eis o que representaria o triunfo e o domínio político das linhas populistas, criando enormes tensões com Bruxelas.
As várias soluções possíveis são muito complexas e isso entrega, como é já costume constitucional, as chaves do jogo político ao Presidente da República. Eis o que subverte a letra da Constituição, mas tem o engenho ergonómico da realidade constitucional: assim foi com quase todos de Leone a Napolitano, de Pertini a Scalfaro. Chegou a vez de Matarella, por sinal bem mais jovem do que mandam os manuais (não chegou ainda aos 80 anos).
E até a deriva populista tem os seus pergaminhos. Primeiro, no quadro da operação Mãos Limpas, com o espectro da República dos juízes e o protagonismo “dos juízes-políticos”. E, logo de seguida, com o aparecimento de Berlusconi, que hoje surge como uma hábil e velha raposa da política italiana (à Andreotti), mas que irrompeu, nos anos 90, como um verdadeiro Trump avant la lettre.
2. Olvida-se, porém, que a Itália não é só museu, é outrossim laboratório. Foi experimento bem cedo na emergência das propriedades do Estado moderno nas suas múltiplas “repúblicas” (e aí está o Príncipe de Maquiavel para o atestar). Mas também e seguramente na difusão do nacionalismo e na aspiração da unificação: quem se esqueceu do papel de Mazzini? Foi assim com o advento das ideias fascistas e de Mussolini no início do século XX. Assim foi com o lugar único e irrepetível do Partido Comunista italiano nos quarenta anos do pós-guerra. E nem a lógica de actuação das Brigadas Vermelhas e dos seus antagonistas deixou de estar com o ar do tempo. Pensando no fenómeno Trump, basta evocar o triângulo “empresa-comunicação-política” armado por Berlusconi.
Que fique claro: na inovação política, a Itália não pede meças a ninguém. A condescendência dos congéneres europeus não tem sentido algum: poucos países dispõem de um ambiente cultural e académico tão rico e informado, com um debate tão completo e complexo. É algo que não transparece para a esfera pública e se ignora fartamente, mas atesta a sentença de Galileu: eppur se muove. Não pode, por isso, espantar que, para o bem e para o mal, a Itália tome a dianteira em algumas experiências. A reclamação do Cinco Estrelas de instauração de uma futura democracia directa por via electrónica é a mais perigosa delas; a hostilidade à Europa, ainda que mais pela insuficiência dela do que pelo seu excesso, é decerto outra. A hostilidade à imigração não tem, por sua vez, essa essência diferenciadora, mas dispõe de alguma radicação na realidade que não deve ser subestimada. O ódio ao imigrante é intolerável, mas a forma como a Europa está ausente da crise migratória na Itália e na Grécia é altamente criticável e serve de pasto para aquele inominável ódio.
3. Museu ou laboratório, as incógnitas são muitas. A Itália exportou os seus melhores (Draghi e Monti; Mogherini, Tajani e Letta num outro patamar). O primeiro risco de um governo mais populista não é a saída do euro nem nada que se compare: é abrir uma brecha no bloco, até agora surpreendentemente inquebrantável, dos 27 contra o Brexit.
Em Roma, não há fumo branco, só há smog. Mas uma coisa de que se fala cada vez mais em Bruxelas, embora a sotto voce, pode surpreender. Com a saída de Renzi, Mogherini pode tornar-se a candidata dos socialistas à presidência da Comissão Europeia. Com a subalternização da Forza Italia face à Liga, Tajani pode ser o candidato PPE. Qual o antídoto que Bruxelas tem para o eurocepticismo de Roma? Entregar a Comissão a um italiano… Não propriamente inovador.