Da emulsão aos pixéis

Uma viagem aos tempos em que o fotojornalista era um homem dos sete ofícios, um explorador que encontrava sempre o caminho de acesso aos leitores.

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Manuel Roberto

Eram 9h15 e mal tinha obliterado a senha no autocarro 84 que me levaria de Vila Nova de Gaia à redacção do PÚBLICO no Porto quando o som que nos orgulhava, como fotógrafos de piquete no jornal nos anos 90, me começou a chamar: “Bip-bip, bip-bip, bip-bip, bip-bip, bip-bip...”. Era o pager que eu levava preso ao cinto das calças, cujo sinal estridente e contínuo se tornava incomodativo, mas que eu não conseguia silenciar pela quantidade de passageiros que me envolviam e que mal me deixavam mexer. Por mais incómodo que fosse, aquele minúsculo aparelho não era para todos. Quando tocava, era sinónimo de responsabilidade e ficávamos ansiosos (não conheço um emoji que represente tamanha ansiedade) até encontrarmos a cabina telefónica mais próxima. Antes da existência de telemóveis, o pager ou o beeper eram a ligação da redacção com os jornalistas-fotógrafos no exterior. Eram aparelhos que nem meia dúzia de caracteres suportavam, mas, mesmo no mais improvável dos cenários, eram um meio de contacto: se mostrasse o número 1, era urgente; se mostrasse o número 2, quem tinha enviado o bip esperava a nossa chamada; se fosse o 3, devíamos ligar quando disponíveis. Os telemóveis ainda gatinhavam, apesar do tamanho. Admiro os companheiros das rádios que tinham de lidar com baterias gigantes para fazerem os seus directos. Uma das nossas odisseias era quando nos atribuíam o único telefone-satélite de que a redacção dispunha, sinal de que estávamos destacados em reportagem para um lugar aonde o cordão umbilical com a “nave-mãe” não chegava.

O “sexto sentido”, uma boa forma física, conhecimentos básicos em físico-química, electrotecnia e telecomunicações eram muito importantes para um grande fotógrafo de imprensa, sobretudo nestas situações. Sem estes requisitos, por muito bom que fosse o nosso trabalho, nunca chegaria aos nossos leitores. Nos anos 90, uma boa caixa de ferramentas de electricidade, alicates isolados, busca-pólos e outras chaves faziam parte do material de um fotojornalista precavido, quando em viagem.

Apesar de muitos de nós não nos conhecermos pessoalmente, trocávamos informações através dos sistemas de conversação da época, tais como o mIRC ou o ICQ. Na redacção, havia um único computador, um Macintosh LCIII, ligado à Internet, diante do qual se  formava uma enorme fila, dadas as combinações de encontros pela urgência em saber o que estava a acontecer em África, no Brasil e noutros mundos. Na Internet, só era possível informarmo-nos com amigos com os quais estavam agendadas conversas numa sala de “chat”. Antes do Google, os motores de busca existentes faziam-nos procurar uma agulha num palheiro.

O meu primeiro telemóvel, um Ericsson GH337 da Telecel, com um ecrã minúsculo e duas opções, yes ou no, custou-me cerca de 200 contos (cerca de mil euros). Apenas dava para atender e fazer curtas chamadas. A operadora cobrava-me uma exorbitância, um luxo para um fotojornalista comunicar com a redacção. Quebrei muitas vezes a curta antena, ao sentar-me, distraído, mas foi com ele que fui pela primeira vez, a pedido do meu grande camarada e editor Fernando Veludo, para a Guiné-Bissau, para cobrir um dos golpes de Estado.

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Manuel Roberto
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Manuel Roberto

A quantidade de material que levávamos para a reportagem excedia de longe a pequena mala que hoje transportamos em viagens de longos dias de trabalho num avião de uma companhia de bandeira ou de uma low cost. Era um pequeno contentor que fazíamos questão de salvaguardar como se de uma vida se tratasse. Várias embalagens de produtos químicos para revelação de filmes, secador de cabelo para os secar, molas e ferramentas, scanners de filmes, modems da US Robotics de 56Kb, longe de serem os routers que hoje conhecemos. Cabos e mais cabos. A única app disponível era um protocolo de comunicação por modem e de “barba rija”. Na mala, cabia o laboratório inteiro de fotografia e toda a parafernália que imaginávamos que nos poderia ser útil. Levávamos tanta coisa para podermos trabalhar que depois até nos faltava espaço para o essencial da nossa sobrevivência, como umas latas de atum ou de sardinha.

Na reportagem da Guiné-Bissau, por mais incrível que possa parecer, só não previ uma coisa: a minha segurança (ainda sinto aquele pontapé no peito de um dos seguranças de Nino Vieira quando fotografava Ansumane Mané em frente ao palácio presidencial) e a falta de electricidade e combustível. Um pequeno gerador teria feito parte da minha bagagem de levar às costas. Daria muito jeito, mas havia boa lenha para uma fogueira onde aquecer os produtos químicos para a revelação dos negativos a cores numa panela. Os filmes secariam ao relento, tal era a temperatura do ambiente. Até porque dentro do estaleiro de construção civil, onde o meu camarada Pedro Rosa Mendes e eu coabitámos com três companheiros da SIC, havia ratos que preferia que me roessem a mim se isso significasse que não tocariam na emulsão sensível dos negativos de um grande povo que procura há anos a sua merecida paz.      

Nos quartos ou lugares onde nos instalávamos, muitas vezes sob grande tensão, inundávamos as casas de banho com água e os cheiros de produtos químicos durante a revelação dos filmes. Era preciso secá-los de imediato para os digitalizar num scanner quando não trazíamos o LeaFax35. Descascávamos a cablagem para nos ligarmos. Fazer chegar o trabalho o mais rapidamente possível ao jornal era o nosso objectivo. Involuntariamente, rebentávamos com as centrais telefónicas dos hotéis na ânsia de enviarmos o trabalho. Desmontávamos as tomadas das comunicações e ligávamos os nossos equipamentos para fazermos chegar as reportagens aos leitores. Era quase certo termos um(a) recepcionista à porta a queixar-se. Ainda não havia a Airbnb, com Wi-Fi.

Chegávamos a digitalizar as fotografias seleccionadas em condições extremas, por exemplo, entre tiros de morteiro. Transmitíamo-las para o jornal, acreditando sempre que algum do nosso trabalho chegaria ao destinatário. Às vezes, era uma questão de fé! A verdade é que as fotografias chegavam sempre aos leitores. Nem que tivéssemos que percorrer quilómetros para treparmos a um poste de telecomunicações para enviarmos o material.

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Manuel Roberto
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Manuel Roberto

Os fotojornalistas têm sido ao longo destes anos como os bateristas daquelas bandas de música em que, ao fundo do palco, onde ninguém dá por eles, são também os vocalistas. Ou seja, também marcam o ritmo da agenda noticiosa. 

A dor de estômago que hoje ainda sinto vem dos dias do analógico, em que a fotografia era mais pensada, fotograma a fotograma. Sem artifícios. Na exposição e na revelação de uma película de 36 exposições ou menos, enquanto não víssemos o resultado final, a barriga estava sempre em chamas, pelo que a técnica era muito mais apurada e mais elaborada. Sabia-se exactamente o que se estava a fazer. E os equipamentos eram muito maiores.

Hoje, temos tudo muito mais simplificado. A arte de fotografar é de todos e para todos. Democratizada, portanto. Temos muitos pixéis da vida por registar. Só peço que os guardemos de uma forma concreta, palpável, para os sentirmos. Não aqueles pixéis imediatos e ilusórios cheios de filtros guardados numa nuvem que se pode dissipar a qualquer momento. São também parte da história documental da humanidade, com certeza. Não ponho isso em causa. Mas a fotografia, essa, não basta sabermos ver ou olhar. Temos que sentir, porque o que apenas olhamos ou vemos rapidamente esquecemos. O que sentimos, o que tocámos e nos fica no coração, jamais esqueceremos. É aquela memória que o coração nos dita para a lembrarmos para sempre. Façamos agora dos pixéis uma parte da memória de todos nós.

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