O segredo de justiça, a grande corrupção e o Estado de direito
O acesso a factos políticos, económicos e sociais relevantes, ainda que estejam sob investigação criminal, parece-me determinante para a qualidade da nossa cidadania.
Tradicionalmente, o segredo de justiça serviu não só para proteger a investigação como para proteger os arquivamentos e as prescrições. Não nos crimes comuns ou na pequena criminalidade mas na chamada criminalidade do colarinho branco.
A Polícia Judiciária investigava as violações do segredo de justiça – isto é, interrogava e constituía como arguidos os jornalistas autores das notícias que furavam a pesada opacidade das investigações das figuras do poder – quando era conveniente ou quando era pressionada para tal. Quando as figuras do poder se sentiram demasiado incomodadas com o jornalismo de investigação e as notícias que davam conta à opinião pública das investigações criminais, os deputados do então arco da governação, na revisão da Lei Fundamental em 1997, incluíram na Constituição o segredo de justiça, como direito ou garantia fundamental, de forma a poder contrapô-lo à liberdade de expressão e de informação. Em nome da defesa do bom nome dos investigados criminalmente, o silêncio seria uma regra fundamental.
Verdade seja dita que tal constitucionalização não teve grandes consequências práticas até porque o regime legal do segredo de justiça foi sendo alterado no sentido de restringir o seu alcance de forma a compatibilizá-lo com a dimensão matricial da liberdade de expressão e de informação numa sociedade democrática como o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos ao longo dos anos foi reafirmando.
E hoje em dia, no mundo da justiça, fora os habituais sectores mais ligados à defesa penal dos arguidos “importantes” e alguns aplicadores das leis mais “quadrados”, ter-se-á generalizado a compreensão da extrema relatividade do segredo de justiça.
Esta semana, a procuradora-geral da República afirmou que quanto à violação do segredo de justiça, tem uma posição "muito próxima" da do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, mais considerando que a violação do segredo de justiça "não é um crime que ponha em causa os alicerces do Estado de direito". Afirmou, ainda, Joana Marques Vidal não se rever “numa sociedade em que o segredo e a opacidade sejam a marca dominante. Isso é impensável e impossível". Um saudável entendimento de quem conhece as realidades da investigação criminal e procura assegurar o seu êxito dentro do Estado de direito.
Mas, de forma evidente depois das Operações Mãos Limpas em Itália e Lava Jato no Brasil e independentemente do regime legal do segredo de justiça, tornou-se evidente que nas sociedades modernas e democráticas, os processos de investigação criminal que tocam nos alicerces, corredores e meandros do poder político e do poder económico necessitam de ser acompanhados, compreendidos e, de alguma forma, apoiados pela opinião pública para não soçobrarem nos múltiplos e imensos obstáculos e pressões que geram por parte dos “incomodados”. Não é possível manter durante anos processos de investigação deste tipo no segredo dos deuses porque, a coberto desse manto de silêncio, as figuras envolvidas e os poderes atingidos nos seus interesses, exactamente pelo seu poder, esmigalhariam a investigação. E também não é possível manter esse silêncio porque, como cidadãos, não estamos dispostos a ser mantidos na ignorância de factos, muitas vezes extremamente relevantes da nossa vida social, isto é, estarmos a ser enganados durante anos sobre quem nos governa ou quem decide do nosso futuro e do nosso presente.
É certo que esta nova realidade pode inserir-se em fenómenos, sempre perigosos, de populismo e levanta problemas quanto aos direitos de defesa dos arguidos mas convém também não esquecer que a capacidade de intervenção e resposta na arena pública dos arguidos socialmente relevantes é também muito grande. Veja-se o caso recente do escândalo dos laboratórios farmacêuticos Novartis que, segundo uma investigação efectuada pelo FBI (!), ao longo dos anos terão pago milhões a inúmeros políticos e funcionários públicos gregos para que os preços dos medicamentos fossem artificialmente empolados. Neste momento, alguns dos políticos em causa já apresentaram queixas crime contra o actual primeiro-ministro, as testemunhas e o próprio ministério público.
Pese embora os riscos do populismo, o acesso a factos políticos, económicos e sociais relevantes, ainda que estejam sob investigação criminal, parece-me determinante para a qualidade da nossa cidadania.