Ferrovia: a bitola é uma falsa questão!
Não é a existência da bitola ibérica que constitui um entrave à competitividade da ferrovia.
Recentemente têm vindo a público algumas notícias e iniciativas relativas à bitola ferroviária em Portugal, que culminaram com o manifesto Portugal: Uma Ilha Ferroviária na União Europeia, publicado em Junho de 2017, e que esta quarta-feira, dia 28 de Fevereiro, foi abordada numa conferência na Ordem dos Engenheiros, em Lisboa.
Como é sabido, a bitola da rede ferroviária de Portugal (e de Espanha) é diferente da europeia. Por causa desta diferença de bitolas, os comboios ibéricos não podem circular na rede ferroviária europeia e, logicamente, os europeus também não podem circular na rede ibérica.
Os autores do referido manifesto Portugal: Uma Ilha Ferroviária na União Europeia alegam que Espanha se prepara para introduzir a bitola europeia num conjunto de linhas, o que isolaria Portugal ainda mais, em virtude de não se encontrar projectada qualquer ligação em bitola europeia no nosso país. E concluem os autores do manifesto que tal situação irá agravar a competitividade das nossas exportações e tornar-nos menos atractivos para o investimento estrangeiro.
Com todo o devido respeito pelos subscritores do referido manifesto, consideramos que a questão da bitola é uma falsa questão, não tendo qualquer fundamento os argumentos, as conclusões e os receios invocados. No essencial, apresento quatro exemplos concretos que demonstram não ser a bitola uma questão:
1. Tráfego fronteiriço Portugal/Espanha
Espanha continua a ser o maior parceiro comercial português, representando cerca de 50% das nossas trocas comerciais com o exterior. Deste volume de mercadorias transaccionado entre os dois países ibéricos, somente cerca de 4% é movimentado por caminho-de-ferro. O remanescente (96%) circula essencialmente por rodovia (mais de 90%).
Sendo a bitola dos dois países exactamente a mesma, facilmente se conclui o que é óbvio: não é por causa da bitola que a ferrovia não é competitiva. Nem é a incapacidade competitiva da ferrovia que retira competitividade às nossas exportações para Espanha.
2. Tráfego nacional
Em Portugal, a bitola da rede ferroviária é a ibérica. Tal como no tráfego transfronteiriço, também no mercado interno a ferrovia tem uma quota marginal no transporte de mercadorias, de cerca de 6%. Verifica-se, por conseguinte, e uma vez mais, que não é a existência da bitola ibérica que constitui um entrave à competitividade da ferrovia.
3. Comboio “Autoeuropa”
Em anos anteriores, a nossa empresa, Medway, então CP-Carga, e o operador ferroviário público alemão, Deutsche Bahn, organizaram um comboio regular entre o nosso país e o centro da Alemanha, que ficou conhecido pelo comboio da “Autoeuropa”, por ter esta fábrica como principal cliente.
Este comboio circulou nas duas redes ferroviárias, a ibérica e a europeia, ou seja, entre Portugal e a fronteira hispano-francesa eram utilizados os nossos comboios (de bitola ibérica) e entre esta fronteira e o destino final, na Alemanha, eram utilizados os comboios da Deutsche Bahn. As mercadorias eram, por conseguinte, transbordadas na fronteira de uns comboios para os outros.
Este comboio funcionou bastante bem e de forma competitiva, não tendo vingado apenas e só por causa do boicote da ferrovia francesa. A diferença de bitola não constituiu qualquer problema, nem afectou a competitividade deste comboio.
4. China-Europa
Recentemente, têm começado a circular comboios de contentores entre a China e alguns países europeus (Alemanha, Inglaterra e Espanha). Estes comboios atravessam quatro bitolas diferentes e estão a funcionar, sem quaisquer problemas. O facto de terem de transbordar as mercadorias em quatro momentos não constitui qualquer entrave.
Estes quatro exemplos demonstram bem o que acima referimos: a bitola é uma falsa questão! A competitividade da ferrovia depende unicamente de outros factores, designadamente do traçado das linhas.
Não faz, por conseguinte, qualquer sentido investir vários milhares de milhões de euros em linhas de bitola europeia, como propõem os subscritores do manifesto. Seria um verdadeiro desperdício que em nada contribuiria para aumentar a competitividade das nossas exportações; pelo contrário, só iria agravar a sua competitividade, na medida em que teriam de suportar os custos deste investimento, através da correspondente taxa de uso devida pela sua utilização.
Aproveito para recordar o exemplo marítimo que constitui um excelente exemplo do que deve ser feito para minimizar o impacto da diferença de bitolas. Em 2018, mais de 600 milhões de TEUS serão movimentados nos terminais de contentores de todo o mundo. Destes, mais de dois terços são transbordo (“transhipment”), isto é, são descarregados de um navio para serem carregados noutro navio. Ou seja, não são nem importação nem exportação local. Por exemplo, o porto de Sines deverá movimentar este ano cerca de 1,7 milhões de TEUS, dos quais mais de 80% são “transhipment”.
A indústria do transporte marítimo de contentores está, assim, organizada a nível mundial com base no transbordo, o qual não constitui qualquer problema, nem afecta a sua competitividade, rentabilidade ou eficiência.
Assim, acredito que a resposta esteja antes na existência de bons terminais na fronteira franco-espanhola, que permitam um rápido transbordo das mercadorias, a custos competitivos, como sucede nos terminais portuários. Os custos desses terminais ferroviários corresponderiam a uma ínfima percentagem do investimento necessário para a implementação da bitola europeia em Espanha e Portugal. E, se necessário, nem seria preciso qualquer investimento público, pois seguramente haveria investimento privado disponível para investir nestes terminais. O custo e o tempo da operação de transbordo são absolutamente marginais num transporte ferroviário entre Portugal e o centro da Europa.
Acresce que a construção de linhas ferroviárias com bitola europeia em Espanha e Portugal iria isolar ainda mais Portugal em termos ferroviários (já que a alteração total da rede ferroviária nacional para a bitola europeia isolaria toda a parte da rede que se manteria em bitola ibérica).
Por outro lado, o custo adicional de utilização de uma nova infra-estrutura (bitola europeia) garantidamente será muitíssimo superior ao custo da operação de transbordo.
Por último, importa recordar que têm vindo a ser desenvolvidas soluções de eixos variáveis, que já estão a ser testados e que, uma vez instaladas nas locomotivas e vagões, vão permitir que os comboios circulem em diferentes bitolas. Ou seja, a bitola deixará, então, de ser mesmo o “problema” que nunca foi, nem é!
Pelas razões acima indicadas, a questão da diferença de bitola é uma falsa questão, não tendo qualquer relevância para a questão da competitividade da ferrovia e, muito menos, para a competitividade das exportações nacionais.
A questão da bitola é uma falsa questão!