"A revolução somos nós": Joseph Beuys em documentário
Retrato de um artista, o filme de Andres Veiel é também uma história da performance.
Beuys, o filme documental de Andres Veiel actualmente em exibição em Portugal, dá-nos a ver a revolução artística que Joseph Beuys procurou desenvolver, misturando vida e arte, artista e obra, transformando a arte em algo (dirigido ao) social, e por isso, de âmbito eminentemente performativo.
É um filme com as marcas do nosso tempo, onde se começam a reconstruir histórias da arte da performance dos anos 60-80, através dos registos fragmentados que chegaram até nós. Encontramos essas marcas quer na apresentação de fragmentos de filmes de arquivo de algumas das suas performances (processo que nos possibilita hoje um olhar sobre a acção performativa e, essencialmente, sobre o seu enquadramento, a presença dos espectadores e a sua reacção, os lugares da acção), quer na própria sequenciação de fotografias de instalações artísticas de Beuys, que lhes dão movimento e performatividade, quer ainda através de depoimentos do próprio em entrevistas, ou de críticos, jornalistas, curadores, amigos e familiares.
O filme permite verificar que a actividade de Beuys foi amplamente acompanhada pelo público, pela crítica, e pelo registo (através da presença constante de câmaras fotográficas e de filmar), contrariando uma imagem sobre a arte da performance, geralmente caracterizada como efémera, sem registo, sem público e para circuitos fora do mercado da arte. Esta mediatização que, porventura, terá sido assumida intencionalmente por Beuys, no sentido de disseminar a sua mensagem, garantiu também que pudesse ter sido constituído um arquivo sobre a sua actividade e a possibilidade deste documentário.
A performance aparece como um eixo transversal da sua acção. Como nos diz o próprio no filme, "a performance surgiu organicamente", como um meio que lhe "permitia expandir os limites da arte". A anteceder-lhe surge o conceito de "escultura social", assumido num sentido performativo, como meio de comunicação. "Pode a escultura mudar o mundo?", pergunta Beuys.
Através desses media ele vai expandir a sua acção para uma "arte social", que chegou a ter expressão pedagógica e política, vindo a ser professor na Academia de Belas-Artes de Düsseldorf, fundador da Universidade Livre Internacional, e dirigente do Partido Os Verdes, da Alemanha.
Nestas diversas acções mantinha sempre a premissa de que não acreditava na democracia (nem no capitalismo) mas que mais do que lutar pretendia dar "exemplos".
Um dos episódios destacados no filme é o enigma da sua história pessoal, nomeadamente o relato do acidente de avião, enquanto piloto da Luftwaffe, de que é supostamente salvo pelos tártaros, o povo nómada da Crimeia, que besuntam o seu corpo em gordura e o enrolam em feltro. Mesmo o depoimento directo de Beuys em entrevista, como nos é apresentado no filme, deixa-nos em dúvida sobre a veracidade desse "evento salvífico", que justificará a introdução destes elementos (gordura e feltro) na sua escultura. O livro Joseph Beuys — Cada Homem um Artista, publicado em Portugal, em 2010, pela 7 Nós, aprofunda esta temática.
Ele próprio assumirá que se estava a curar através da sua arte, e, de facto, o filme mostra-nos um período de profunda depressão que antecede a sua prática artística e que terá a ver com os traumas da guerra. Não há no filme um relato de Beuys a justificar a sua participação militar, há a sua quase morte e a sua arte como cura xamânica de si e da sociedade. Fará instalações artísticas, com desenhos e objectos sobre os campos de concentração nazis a partir de 1958, e algumas peças mostradas no filme são especialmente significativas dessa situação traumática: Como explicar imagens a uma lebre morta (1965), Mostra a tua ferida (1974-1975). A superação do trauma parece, efectivamente, ter encontrado um veículo na sua acção artística, através de práticas que entravam não só nos espaços da arte mas que se estendiam para o espaço público, para uma acção directa no quotidiano. É nesse contexto que participará, diversas vezes, na Documenta de Kassel, sendo que só na primeira terá uma instalação artística; nas restantes substitui-la-á por acções directas como a dinamização de inúmeras conversas, a acção ecológica de plantar sete mil carvalhos, o apoio à comunidade e a angariação militante de financiamento por si próprio. Vai ser, também, um crítico feroz do mercado da arte americano, sendo icónica a sua performance Gosto da América e a América gosta de mim (1974), em que é transportado do aeroporto para a galeria numa ambulância, enrolado numa manta de feltro, sem nunca tocar em "solo americano". Na galeria coberta com exemplares do Wall Street Journal permanecerá uma semana com um coiote, representante simbólico dos povos indígenas da América, tendo por única protecção a sua manta e uma bengala. Esta performance virá a ser mais tarde referenciada por Oleg Kulic em I Bite America and America Bites me (1997).
Algumas das suas intervenções, como a entrada numa sessão solene de recepção aos novos alunos na Academia de Düsseldorf (1967) com um machado na mão, a que se seguiu o seu discurso proferido em grunhidos, parecem ter a sua referenciação possível noutros autores, de Victor Hugo, que no seu célebre prefácio-manifesto em Cromwell solicitava que se destruíssem a "martelo" as "teorias, as poéticas e os sistemas", até Artaud, que, tendo também participado na Segunda Guerra Mundial, como resistente, não só pronunciou discursos caóticos onde as palavras lhe pareciam fugir como escreveu uma Carta aos reitores das universidades europeias denunciando os seus sistemas "bolorentos", até Hugo Ball, vestido de alto sacerdote improvisado no Cabaret Voltaire, em Zurique, 1916, proferindo um poema com uma linguagem inventada, a única comunicação possível para uma comunidade heterogénea de artistas exilados da guerra. Uma outra linguagem contra os silêncios e não-ditos.
Sabemos que o acesso à História, quer do passado, quer da que se está a fazer em cada momento, é sempre um potenciador para o futuro. Ernesto de Sousa foi, em Portugal, um divulgador da obra de Beuys, tendo participado na Documenta 5 de Kassel, entrevistando-o e escrevendo um artigo a que chamou O Estado Zero: Encontro com Joseph Beuys, publicado no jornal República de 28-12-1972. Nesse artigo, depois de fazer uma breve história dos happenings, dos acontecimentos, da poesia de acção, e dos seus principais intervenientes, apresenta-nos Beuys como um guru. Fala da sua acção de professor-performer, descreve a sua figura performativa e a sua acção de diálogo com os visitantes da Documenta, num processo de "democracia directa". Começa por perguntar-lhe se se considera uma pessoa séria. Beuys responde que sim, salientando que também se considera um clown. Através desse binómio, tão norteador da arte da performance, procurava uma utopia "positiva", "no domínio das possibilidades reais". Dela fazia parte a crença de que "cada homem pode ser um artista" e de que a "Revolução somos nós".
Este filme apresenta-se como um documento importante para manter a sua utopia viva.