O homem pensa, deus ri e a escritora também
Um pícaro, cheio de referências literárias, uma teia acerca do insólito que é ter Olhão como centro do mundo a partir da vida de um aventureiro russo. É a estreia de Ana Cristina Leonardo num romance de erudição e humor.
Faz sentido haver o som do mar nesta conversa. O centro dela é uma terra à beira do Atlântico, centro do mundo do romance de estreia de uma leitora, jornalista, tradutora, crítica literária. “Não sei se é um romance, não sei como é que se chama.” Ana Cristina Leonardo quer dizer que não sabe como definir o género do que escreveu, que não é conto, crónica ou ensaio. É uma ficção com muitos factos reais, fantasia, e grande dose de pícaro numa embrenhada teia de referências que cruza a história da Europa na primeira metade do século XX. Mas está longe de ser um romance histórico. É o Retrato Imaginário de Boris Skossyreff, Russo Apátrida e Rei de Andorra por Uma Semana, Conhecido em Olhão por Mano-Rei . Eis o subtítulo de O Centro do Mundo, agendado para esta Primavera pela Quetzal.
O centro do mundo é Olhão, a cidade onde Ana Cristina Leonardo nasceu numa família de conserveiros a quem os de lá chamavam os Caduca. Primeira história por tentar desvelar; talvez a génese da alcunha esteja no facto do bisavô lá ter chegado velho. “São histórias impensáveis. Começa-se a puxar um fio e cada uma é mais divertida do que a outra”, conta numa sucessão de episódios rocambolescos onde a existência da família se cruza com a do lugar e dá um quadro rocambolesco onde entra loucura, suicídio, pobreza, paixão, bruxaria, malandragem, fugas ou fortunas perdidas, de tal forma que logo se presume Teseu com o cordel dado por Ariadne a passear, mas sem volta, pelas ruas “imundas” da Olhão onde um dia chegou Boris Skossyreff à procura de um modo de alcançar Marrocos.
Esse passeio sem volta foi o que aconteceu à jornalista no dia em que, no Expresso, lhe pediram uma reportagem sobre um centro cultural em Olhão. A reportagem nunca se fez por Ana Cristina Leonardo se ter sentido enredada numa teia infindável da qual lhe surgiu Boris. E quem é Boris? “Um aventureiro russo. O homem nasceu em Vilnius, na Lituânia, no final do século XIX, foge durante a revolução russa e vai parar a Inglaterra que apoiava a família do Czar. Ele existiu; o que é ficcional é o relato que invento”, explica antes da longa peripécia que foi a vida de Boris.
Depois de ter saído da Rússia, tem uns trabalhos de espionagem em Londres, passa cheques sem cobertura e é despedido. Vai para a Holanda, inventa que é duque. Corre mal. Uma notícia diz que roubou um relógio de ouro. Ruma às Canárias e cria um estatuto de aristocrata russo a quem os comunistas teriam roubado tudo. Aí, cruza-se com uma americana endinheirada, engata uma inglesa mais nova, que seria a secretária da americana, e vai a Andorra onde convence “aquela gente” a nomeá-lo príncipe. Será, por uma semana. Depois é preso. Passa por Barcelona, Madrid e chega a Portugal; entra por Portalegre, vai para Lisboa, dá entrevistas, mas não tem papéis. Quer um passaporte. A ideia é ir para França, mas por Marrocos, então colónia francesa. Em Lisboa dizem-lhe para ir a Olhão “onde há uma malta que leva as pessoas para Marrocos”. No caminho cruza-se com personagens tão ou mais extraordinárias. Um cineasta doido, um ex-emigrante na América que ajuda pessoas a fugir apenas por solidariedade no seu barco de pesca, um médico que poderia ter vivido no Renascimento, de quem se dizia ser “tão bom, tão bom que sabia de tudo, até de medicina”. É ele quem acolhe Boris, que nunca chegará a França por Marrocos, atravessa Espanha na guerra civil e é preso num campo de concentração nos Pirinéus. Quando os alemães entram lá, alia-se a eles, traduz interrogatórios de presos, e é ele mesmo preso mais tarde por americanos.
“Ele atravessa a história e a geografia europeias e passa por Olhão que é o centro do universo”, resume Ana Cristina Leonardo, que se deliciou com a narrativa, mas… “Não me interessava fazer romance histórico. Tirando excepções, poucas e antigas. Está esgotadíssimo. Por outro lado, não podia fazer um documento, precisava de investigação, mas tinha estas personagens todas. A minha dificuldade era como ligar isto. Tive uma iluminação, acho, fazer uma terceira parte do livro com cinco depoimentos em discurso directo, como se estivesse a perguntar a cada uma: ‘então, conheceu o Boris?’ E depois cada uma fala de outra coisa. Podem dizer apenas, ‘olhe uma vez encontrei-o na avenida’, mas antes contam uma data de histórias.”
Não faltava assunto; faltava o modo de contar. “Histórias, toda a gente tem, mas como é que as conta? Esse é sempre o drama, como é que se contam no século XXI, depois do Tolstói ou do Flaubert? Vai-se continuar a contar uma história?”, indaga, para depois explicar a razão pela qual, depois de anos a escrever para jornais e revistas, de ter publicado um livro infantil, Joaninha, a Menina que Não Queria Ser Gente (Gradiva) e Diário do Farol (Hierro Lopes), volume com apontamentos e fotografias, só agora se aventura no romance. “Irrita-me isto de que toda a gente tem de escrever, sobretudo romance. Quando se tem gosto pela escrita e pela leitura, e quando se vai trabalhar para um área em que se exercita a escrita, na reportagem, na entrevista, na crónica, há uma parte dessa necessidade que está preenchida. Se o meu trabalho não tivesse nada a ver com a escrita se calhar ter-me-ia empenhado mais em escrever para mim, mas a partir do momento em que se passa a vida a escrever, para quê escrever mais?”
Escreveu agora, de forma lenta, como escreve sempre que o faz para si. E usando um humor particular que se pode comparar ao de autores judaicos. Não recusa a semelhança. Talvez partilhe até origens. “É esta noção do trágico que ao mesmo tempo é cómico. Nós somos ridículos. O verdadeiro humor é daquilo que é trágico, senão é piada. O trágico é a nossa falta de importância. Não somos nada, como diz aquele provérbio judaico, ‘o homem pensa e deus ri’. Isto não tem importância nenhuma. O meu pai tinha esse humor e herdei-o”.
E vêm mais histórias, como a da avó a tentar apanhar a tia Bentinha à volta da grande mesa de família e ela, pequena a gritar “Corre Bentinha, corre!” Ou o que pedia a essa mesma avó para lhe contar antes de dormir, coisas medonhas que de manhã a faziam ser incapaz de sair da cama com medo de atravessar a açoteia para chegar ao outro lado da casa. “Esta coisa das histórias se calhar vem daí”, salienta. E sobre a oficina de escrita, diz: “Eu tenho muito humor e, normalmente, é negro e a dado momento é uma questão de desbloquear a cabeça, deixar vir o disparate. É como se fosse um processo de não censura. É um pouco como ser infantil. Depois trabalho aquilo.”