A voz que a pop roubou ao jazz

Cantou Mallu Magalhães no Festival da Canção e compôs para o último disco de Cristina Branco, mas é tempo de escutarmos as suas canções pela sua própria voz. O EP II, entre Los Hermanos e Björk, está ao virar da esquina.

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22 anos. Lança a 8 de Março o EP II, seis canções de uma voz desenfreadamente pop que parece fazer de qualquer refrão algo que sempre soubemos existir e de que estivemos até aqui apenas à espera de ouvir concretizado daniel rocha

Em Novembro de 2015, na altura do ataque terrorista à sala de concertos Bataclan e da investigação que nos dias seguintes virou uma cidade em estado de choque do avesso, Beatriz Pessoa estava em Paris, ao abrigo do programa Erasmus, atraída pela possibilidade de experimentar a intensidade musical da capital francesa. Em vez disso, viu-se rodeada por um clima de pânico e consternação que precipitou o seu regresso a casa antes de terminado o semestre. Ainda para mais, a experiência académica havia de revelar-se pouco estimulante para a cantora que frequentava a Escola Superior de Música de Lisboa (ESML) e passara já pelo Hot Clube de Portugal.

Foi então que, desinspirada pelas obrigações escolares, se lembrou de uma conversa acidental que tivera com o contrabaixista João Hasselberg numa viagem de comboio que aconteceu fazerem lado a lado. Ele perguntou-lhe quando é que começava a escrever as suas próprias canções; ela, que naquele instante não terá passado de um encolher de ombros, voltou a escutar essa pergunta a 1700 quilómetros e uns bons meses de distância e, assim que se sentou ao piano, deitou para fora a sua primeira composição e firmou um pacto consigo mesma: até Fevereiro de 2016, altura em que embarcou de novo para Lisboa, tinha de acumular suficientes temas para chegar a Portugal e montar de imediato uma banda para tocar esse reportório. “Como tinha essa ambição”, conta, “em Paris só trabalhei nas minhas músicas.”

Esse primeiro impulso seria fundamental na definição da sonoridade que começou depois a desenvolver com Hasselberg, João Lopes Pereira (bateria) e Margarida Campelo (teclas e voz), todos músicos em quem confiava por inteiro e com uma maior experiência na criação de uma linguagem que, partindo do jazz, não tinha receio de se descomplicar e de acolher uma leveza pop. “Tive a sorte de começar a compor exactamente na altura em que muitas pessoas do meio do jazz começaram a formas bandas fora desse universo”, diz, atirando para cima da mesa exemplos como Cassete Pirata ou Bruno Pernadas. “Foi muito bom porque as pessoas à minha volta e que eu admirava começaram a seguir esse caminho e deram-me confiança para eu fazer o mesmo.”

Esses exemplos amplificavam algo que começara a aprender nas aulas de voz com Joana Espadinha (no Hot Clube) e com Maria João (na ESML): uma mais desafogada largueza de horizontes, em que cantar Ella Fitzgerald ou Billie Holiday não obrigava a juramentos de fidelidade eterna. Depois dos primeiros alicerces aprendidos com Espadinha e de “muitos anos em que só cantava jazz, standards e participava em jam sessions”, Maria João pô-la a cantar Björk, rap, Hermeto Pascoal e todo um leque de músicas que despertaram em Beatriz o desejo desassossegado de querer compor as suas canções: “Ela deu-me a perceber o que me fazia mais feliz a cantar e a identificar quem me estimulava a escrever música; a forma como nos dava uma música e nos dizia para criarmos o nosso arranjo foi muito importante por me mostrar todo esse espaço de liberdade.”

Essa liberdade desaguou então num regresso ao passado. Antes da Lisbon Jazz Summer School (escola de Verão dedicada ao jazz e programada pelo CCB), que aos 13 anos lhe torceu o destino para a rota do jazz, as noites de Beatriz eram passadas na Internet a vocalizar karaokes de Beyoncé e Britney Spears. A pop quase foi ao fundo depois, com uma tão absorvente descoberta do jazz, e só ressurgiu com um inesperado fulgor quando deixou que as canções saíssem às golfadas. Foi quando Lianne La Havas, Laura Mvula, Björk, Marcelo Camelo, Rodrigo Amarante, Mallu Magalhães ou Elis Regina começaram a infiltrar-se no seu canto e a não se esconder por detrás dos acordes.

Inglês-português

Algumas destas referências encontramo-las no EP II que Beatriz Pessoa lança em Março. Depois de uma passagem algo atribulada pelo último Festival da Canção (sim, foi ela a intérprete da canção de Mallu Magalhães dada como finalista num primeiro momento e afastada da final depois de uma auditoria aos votos do público; não, não nos vamos debruçar aqui sobre esse episódio), é hora de dar ouvidos às seis canções do disco produzidas por Kid Gomez, colaborador de Tiago Bettencourt  e Sara Tavares. “Estabeleci diferentes inspirações para cada música”, diz, sem receio de mostrar de onde vêm algumas das suas opções. Everyday fights teve por norte a cantora islandesa Björk, não tanto na busca da sonoridade mas na abordagem ao poema, Vento foi-lhe soprada por gente como os dois barbudos dos Los Hermanos (Camelo e Amarante) ou Mallu – “foi a música em que mais me inspirei no Brasil”, descreve.

Conscientes ou não, há também vestígios tentadores de Lily Allen na delicadeza de Through the years e de Stina Nordenstam (ou até de Ana Bacalhau) na melancolia adocicada do desenho vocal de Descontrução, cada uma delas a pender para uma das duas faces linguísticas de II – gravação em que deixa de contar com a banda que a acompanhava até agora, ao afastar-se ainda mais do perímetro jazzístico. “Sinto que componho de forma diferente em português e em inglês”, concede. “Em português há uma leveza mais característica da minha idade [22 anos]. Nas músicas em inglês, de repente, sinto-me mais velha. Adopto essa postura e nem sei porquê. Talvez porque vemos muitos filmes de Hollywood e a nossa forma de falar ou cantar será sempre uma imitação daquilo vemos e ouvimos. Acho também que se ouve muito mais o jazz nas minhas músicas em inglês.” Ao não cantar na língua mãe, a cantora parece igualmente mais disponível para se expor, como se o inglês lhe camuflasse de forma mais eficaz histórias pessoais ou emoções desnudas.

Esse grau de exposição diminui, sem surpresa, quando escreve para outro intérprete. Para Beatriz, que cresceu a assistir aos processos criativos do Teatro da Garagem – companhia dirigida pelo pai, Carlos J. Pessoa, encenador e dramaturgo –, esses casos assemelham-se a procurar ver o mundo pelos olhos de outro/a. Namora comigo, tema incluído no último álbum de Cristina Branco, é uma pequena amostra de uma voz desenfreadamente pop, que parece fazer de qualquer refrão algo que sempre soubemos existir e de que estivemos até aqui apenas à espera de ouvir concretizado. Na sua ou noutras bocas, as canções de Beatriz Pessoa estarão por perto nos próximos meses – está convocada para o próximo NOS Alive –, ocupadas a crescer e a convencer-nos de que precisamos de uma dose diária para melhor suportamos os nossos dias.

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