“Interessa-me muito o que vai desaparecer”
Ramiro, que esta quinta-feira chega às salas portuguesas, é um filme em que encontramos os temas e as aflições recorrentes do cinema do realizador de Quatro Copas. Desta vez Manuel Mozos não escreveu o argumento, mas sentiu-se bem “interpretado”.
Ramiro é a primeira ficção de Manuel Mozos em quase dez anos, sucedendo a Quatro Copas, estreado em 2009. Obedece a um desafio muito especial: o filme escrito por dois argumentistas, Telmo Churro e Mariana Ricardo, que se puseram a imaginar um filme de Manuel Mozos, ou para Manuel Mozos. “Eles conhecem bem o meu universo e entenderam bem o que eu podia fazer”, diz o realizador em conversa com o PÚBLICO. E Ramiro é um filme em que encontramos os temas e as aflições recorrentes do cinema de Manuel Mozos: personagens desalinhadas e semimarginais, uma Lisboa antiga em vias de desaparecer, uma construção narrativa que avança de pequeno acontecimento em pequeno acontecimento. No centro, uma personagem (Ramiro, poeta e alfarrabista solitário) que é um mistério para o próprio realizador: o que lhe vai acontecer depois do último plano “fica para a imaginação de cada espectador”.
Ao contrário do que é habitual, este filme parte de um argumento que não resultou de uma iniciativa sua.
Foi uma proposta do Telmo Churro e da Mariana Ricardo que eu aceitei. Numa primeira fase apresentaram-me uma versão reduzida do que seria o argumento, eu gostei do que eles propunham e avançaram para uma versão completa. Só a partir desse ponto é que trabalhei com eles.
Portanto, houve intervenção sua no processo de escrita?
Muito pouca. O argumento é deles. Há ali coisas que foram discutidas em conjunto, mas o argumento é deles.
A ideia inicial já estava próxima do que veio a ser o resultado final?
Essencialmente, sim. A personagem do Ramiro estava delineada e prevista como centro do filme. Depois havia uma série de possibilidades, em termos de personagens e de situações, umas foram mais desenvolvidas do que outras.
No fundo, é um argumento de “fãs”, de duas pessoas admiradoras do seu cinema que se põem a imaginar um filme do Manuel Mozos – o que é algo que implica, à partida, um olhar sobre si e sobre o seu cinema. Como é que lidou com isso, com este olhar de outros sobre o seu universo cinematográfico?
Se calhar há coisas que não são muito óbvias nos meus outros filmes, como uma aproximação à comédia, ou, pelo menos, porque não diria que é uma comédia, a certas nuances de comicidade. Embora pessoalmente ache que os meus outros filmes, as ficções e os documentários, têm coisas cómicas, se calhar não tão explícitas. Eles conhecem e entendem bem o meu universo, e sobretudo sabem do meu interesse mais por personagens do que por histórias. Reconhecem elementos transversais aos meus filmes: a ligação a Lisboa, a atenção às coisas que vão desaparecendo ou se vão transformando. E no fundo a construção é semelhante à dos meus outros argumentos, há uma personagem central, e em torno dela um conjunto de outras figuras que agem como instigadoras da acção dessa personagem.
Sentiu-se bem “interpretado”?
Sim. Se não tinha sido mais complicado... Ajuda conhecermo-nos bem, sermos amigos, termos trabalhado juntos noutros filmes. Acho que eles entenderam bem o que eu podia fazer.
Nas suas outras ficções há personagens que se podem ver, em maior ou menor grau, como uma espécie de “duplo” seu. No caso do Ramiro, até que ponto se projecta na personagem?
Quando li o argumento, senti que havia ali várias coisas que podiam ter que ver comigo, serem inspiradas por mim. Enfim, isto não é de maneira nenhuma autobiográfico, mas ali há características em comum: uma certa inabilidade, a resistência às novas tecnologias… Numa fase mais avançada, na escolha dos actores, quis distanciar-me disso e procurar um actor que não fosse parecido comigo. Mas é verdade que existem estes reflexos, pelo menos para quem me conheça.
Continua a preocupar-se com as coisas em vias de extinção. O alfarrabista, as tasquinhas... Isto nunca é o centro narrativo, mas está lá.
Isso é assumido. Aliás, o Telmo trabalhou comigo no Ruínas, e há aqui coisas que estavam pensadas para esse filme e depois ficaram de fora. Interessa-me muito o que vai desaparecer e interessa-me que fique algum registo. Não é saudosismo, se bem que não seja isento de alguma nostalgia. Por exemplo, os alfarrabistas, a tendência é aparecerem no seu lugar lojas que também vendem livros em segunda mão, mas edições de luxo, coisas caras, não como um alfarrabista popular que vende todo o tipo de livros. Assim como as tascas e os restaurantes populares dão lugar a coisas gourmet, a cadeias de chefs famosos, etc. Interessar-me por isto não implica que não perceba que as coisas mudam, nem que as pessoas passam a ter outros gostos. No filme, a personagem do Ricardo Aibéo é ainda mais radical do que o Ramiro…
O Ramiro primeiro estranha, mas depois habitua-se rapidamente ao bar de tapas…
Sim, não chega às tapas de sushi, mas deixa-se cativar pelas de atum...A personagem do Aibéo nesse aspecto é muito mais casca grossa, tem uma gráfica à antiga, desconfia dos computadores… Quer dizer, há ironia nisto, melancolia, não pretendo que equivalha a um discurso do tipo “antigamente é que era bom”.
Quando filma a cidade, nunca há planos gerais. São planos apertados sobre fachadas, esquinas, sem uma perspectiva larga. A cidade adquire uma dimensão misteriosa, labiríntica, meio cabalística...
Eu acho que ainda há um lado secreto, misterioso na cidade, e gosto de sublinhar isso. Se fizesse planos muito abertos, acabaria por dar uma imagem diferente da cidade, não reflectiria essa dimensão misteriosa. Depois, não sei se é por sofrer de vertigens, não gosto nada de utilizar gruas, gosto de ter a câmara a um nível com que nunca perca o contacto, e gosto de estar à câmara na preparação do plano, em vez de usar o monitor. Questões de produção, também: habituei-me a trabalhar com poucos meios, em que para se ter umas coisas tem de se prescindir doutras, e desde o princípio que me habituei a não ter gruas nem material mais sofisticado.
Mas os interiores são um bocado assim também. Fechados, escuros, quase como subterrâneos… Já no Quatro Copas era assim.
Se calhar vejo as casas assim, se calhar o facto de praticamente ter sempre vivido em rés-do-chão ajuda a que as veja assim... mas é um facto que entendi as casas das personagens como tocas. Soturnas, acanhadas, mas seguras, como refúgios. Também são personagens solitárias, não precisam de espaços muito amplos, fecham-se muito sobre elas próprias.
Curiosamente, as cenas em que o campo é mais alargado e existe mais profundidade são as da visita ao subúrbio.
O que me interessa aí é filmar um território que noutros tempos terá sido independente da cidade, mas que se foi degradando à medida em que a cidade avançou sobre ele. Aquilo é dentro da cidade, na zona oriental, é um sítio que foi sendo engolido pela construção a partir dos anos 70, 80. Em termos de tratamento da personagem era importante, porque o vemos num espaço que não domina, que o deixa desconfortável. Filmar com mais profundidade realça isso.
A narrativa tem uma construção muito peculiar. Por um lado, é difícil resumir, ou decidir qual é a “história” do filme. Por outro, está sempre a trabalhar a criação da expectativa de uma explosão dramática – por exemplo, no que toca à personagem do presidiário pai da rapariga – que nunca acontece. Está-se sempre à espera de um “grande acontecimento”, para ficarmos apenas com “micro-acontecimentos”.
Concordo, aliás, divertia-nos a ideia de conseguir ter uma história onde não se passa nada... E depois jogar com pequeninas coisas, como se fossem sugestões de acontecimentos, ou de um rumo para a história. Mas, e isto é importante, se a personagem central é um tipo conformado com a sua vidinha, este tipo de coisas era suficiente para lhe criar uma perturbação e salientar o incómodo dele quando tem de lidar com o que foge à sua rotina. Mas mesmo quando o pai da miúda sai da prisão e se instala em casa dele, o Ramiro não faz nada de especial. Torna-se mais irritadiço, mais perturbado, mas não reage directamente às coisas. Mas se calhar é essa a história do filme, fazê-lo chegar ao ponto em que tem de se mexer. É claro que quando o filme acaba pode ser tudo: ele pode voltar a escrever, mas se calhar não; pode crescer um bocadinho, tornar-se mais sociável, ou então, não. Enfim, fica tudo para a imaginação de cada espectador.
O actor que faz o Ramiro (António Mortágua) é um achado, tem um tipo de presença, fisicamente e na psicologia que projecta, que não há muito no cinema português, pelo menos nesta geração. E é uma descoberta, porque praticamente não fez nada em cinema. Onde é que o desencantou?
Eu não gosto nada de fazer castings, pelo menos seguindo o modelo tradicional de os fazer. Para o Ramiro havia várias hipóteses, e fomos discutindo os prós e contras de cada um, prós e contras no sentido do que é que a personagem ganharia ou perderia conforme o escolhido. Eu conhecia vagamente o António, tinha visto creio que duas peças com ele. Mas não tinha feito nada em cinema, portanto não havia muita informação sobre ele. Encontrámo-nos algumas vezes e decidi arriscar. É curioso que nas primeiras cenas que filmámos ele estava um pouco receoso, um pouco tolhido pela falta de à vontade. Mas isso era perfeito para a personagem, e eu pedi-lhe que ele não perdesse isso, mantivesse aquela espécie de embaraço à medida em que de facto, com o avanço da rodagem, o perdia. Algo que ele fez muito bem.
Ainda sobre a história, ou as histórias, que o filme conta. A partir da presença dos mais velhos no filme – a avó a recuperar da trombose, o mentor do Ramiro que está moribundo – isso não será um filme sobre aquele momento da vida em que os “mais velhos” vão desaparecendo da vista e somos nós, cada um de nós, a tornar-se o “mais velho” aos olhos de outros?
Fico contente que veja assim. À partida isso não era uma coisa pensada, mas fui-me apercebendo ao longo da rodagem que realmente isto era um filme em que os mais velhos vão desaparecendo. Portanto, isso está certo. Agora, não tenho a certeza se o Ramiro tem noção disso, ou se sente assim. Quando o filme acaba, não sei se ele percebeu que a responsabilidade aumentou, que já não ele é a contar com outros, são os outros, mais novos, a contar com ele. Se calhar não percebeu e vai voltar àquela vida desligada e reclusiva.