Ramiro: a delicada poesia do quotidiano segundo Manuel Mozos

Um grande nome da sombra do cinema português encontra o seu duplo e faz com ele a comédia delicada que abre este Doclisboa. Daqui para a frente, o festival será bastante mais duro.

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É “uma comédia delicada”, reza a frase no cartaz de Ramiro. E, de facto, Ramiro é delicado, talvez mesmo discreto, atento, presente, um pouco à imagem do seu autor, Manuel Mozos, um dos grandes nomes “da sombra” (e na sombra) do cinema que se faz por cá e responsável por um dos seus clássicos absolutos, o injustamente desconhecido Xavier (2002). Ramiro é uma escolha, no mínimo, iconoclasta para abrir o Doclisboa 2017, mesmo que seja uma iconoclastia reivindicada pela direcção do certame como um devaneio permitido pelo 15.º aniversário do festival. A quinta ficção longa de um realizador mais conhecido pelos seus documentários (como Ruínas, 2009, ou João Bénard da Costa – Outros Amarão as Coisas que Eu Amei, 2014) não é um documentário, mesmo sendo um filme profundamente ancorado numa certa Lisboa, com um olhar de registo de uma vida de bairro que ainda vai sobrevivendo.

A personagem que lhe dá título, interpretada com justeza por António Mortágua, é uma daquelas pessoas constantes, sólidas, um ombro resmungão e calado mas permanentemente presente, escondendo por trás do silêncio e da falta de à-vontade uma torrente de emoções, de ideias e de criatividade. Ramiro é alfarrabista, poeta raro nas horas vagas, e o seu percurso ao longo deste filme tem algo de jarmuschiano – Ramiro podia perfeitamente ser uma versão portuguesa de Paterson, e o seu poeta alfarrabista não está longe do poeta condutor de autocarro de Adam Driver no belíssimo filme de Jim Jarmusch.

Mas não será também descabido pensar em Ramiro como uma autobiografia de Mozos por interposta pessoa. O protagonista, cujas sensibilidade e inteligência se escondem por trás da timidez e da fragilidade, tem tanto em comum com o próprio realizador que ficamos a pensar se Telmo Churro e Mariana Ricardo (colaboradores regulares de Miguel Gomes) não teriam pensado em Mozos ao escrever o guião de Ramiro. Mas é Mozos, ele todo, inteiro, que vemos a cada momento deste filme. A ele voltaremos quando chegar às salas (estreia prevista no início de 2018), mas para já registe-se que esta “comédia delicada” é uma pequena delícia. Daqui para a frente, o Doclisboa será bastante mais duro.

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