Os fantasmas da história segundo Lav Diaz e André Gil Mata
O filipino Lav Diaz mostrou as quatro horas de Season of the Devil, uma missa negra que usa o passado das Filipinas para falar do presente. Uma experiência radical, ao mesmo nível de Drvo do português André Gil Mata.
Há dois anos, o júri berlinense presidido por Meryl Streep deu o Urso de Prata do festival – o Prémio do Júri – ao filipino Lav Diaz e às oito horas de A Lullaby to the Sorrowful Mystery. Antes, em 2015, Diaz levara o prémio máximo de Locarno com From what Is before (seis horas); depois, ainda em 2016, arrecadou o Leão de Ouro em Veneza com The Woman who Left (duas horas e meia – uma curta pelos padrões do autor). Eis, então, este cineasta condenado a ser favorito dos festivais a regressar ao concurso oficial de Berlim com… uma ópera-rock a capella a preto e branco sobre as vítimas do regime de Ferdinando Marcos. Chama-se Season of the Devil e dura quatro horas.
Diaz jura, num encontro com a imprensa em que o PÚBLICO está presente, que não parte para cada novo projecto com a ideia de fazer objectos com quatro, oito, 12 horas: “É uma decisão que tomo durante a montagem, vendo aquilo que o filme me pede. Sei que muita gente vê os meus filmes aos bocados, sai para tomar um café ou ir a casa fazer amor com a esposa [risos]. Não posso fazer nada, e vivo bem com isso. Mas prefiro que as pessoas vejam os meus filmes de uma vez. Fazer um filme é uma coisa muito difícil, que exige muito investimento de quem o faz. E o que peço aos espectadores é que invistam nos meus filmes tanto como eu e toda a equipa o faz. Quero harmonizar a experiência do cineasta e a do espectador. Um filme, afinal, pode ser parte da nossa vida.”
Season of the Devil é, a esse respeito, parte muito forte da vida de Lav Diaz, e da história das Filipinas cujos recantos obscuros toda a sua obra explora. Numa narração em off ao início do filme, explica-se que a história é uma ficção construída sobre as experiências reais de pessoas reais que viveram o período da lei marcial sob Marcos, durante o qual a devolução do poder a comandantes militares locais levou à criação de verdadeiros “esquadrões da morte”. Mas, como é evidente (e Diaz não faz esforço para o esconder), o filme fala do regime de Rodrigo Duterte, o actual Presidente das Filipinas, e da ascensão mundial do autoritarismo e do fascismo. Isso torna-o irresistível para um “festival do tema” como Berlim (e até um candidato a correr por fora para o Urso de Ouro), mas Lav Diaz não faz “tema” como os outros cineastas. Mesmo que este seja um filme mais urgente, devido à actual situação política, todo o seu cinema tem sido um diálogo constante com a história das Filipinas, construindo uma espécie de história secreta ou alternativa das Filipinas — “porque o cinema é um modo possível de recordar,” diz. “Nas Filipinas não confrontamos o passado, e sinto a responsabilidade de usar o meu meio para falar desse passado — mesmo que seja uma luta, mesmo que os filmes apenas circulem na academia e nos cineclubes, porque filmes como os que faço não têm espaço no circuito comercial.”
Prova disso é Season of the Devil: uma missa de requiem pelas almas dos mortos em que todo o diálogo é inteiramente cantado (as canções são todas do próprio realizador), um oratório progressivamente mais brutal que nos mergulha numa claustrofobia quase sem saída, à medida que os esquadrões da morte da milícia de Ginto eliminam todos aqueles que se levantam contra o seu poder. É um filme em que se cruzam mitologias – a personagem interpretada pela cantora popular Bituin Escalante funciona como um “coro grego”, a par das referências às superstições e tradições das Filipinas provinciais –, mas também influências de cinema. Lav Diaz confessa que viu todos os musicais de Hollywood, mas fala de Season of the Devil como mais próximo do cinema mudo ou do expressionismo alemão – foi rodado com a sua tradicional abordagem de arte povera, em décors naturais na Malásia, e quase todo em primeiros takes. Mas o cineasta filipino explora aqui talvez como nunca a dimensão fantasmática, espectral, destas traumáticas memórias colectivas que continuam a assombrar as Filipinas.
Por aí podemos fazer a ponte com a terceira e última longa-metragem portuguesa exibida este ano em Berlim: Drvo – A Árvore, de André Gil Mata (Forum). Podemos, aliás, fazer a ponte com todas as longas portuguesas – tal como Drvo, também Our Madness de João Viana e Mariphasa de Sandro Aguiar são filmes de fantasmas, assombrados por memórias, sonhos, desejos, espectros da história. É em André Gil Mata, no entanto, que isso mais se nota: a terceira longa-metragem do realizador português, depois de Cativeiro e Como Me Apaixonei por Eva Ras, é autenticamente um “círculo perfeito” que une passado e presente, infância e velhice, inocência e sabedoria, ao mesmo tempo que liga o sofrimento da ex-Jugoslávia na Segunda Guerra Mundial ao conflito dos Balcãs que a estilhaçou numa série de repúblicas.
Drvo começa com um extraordinário plano-sequência de 15 minutos que delineia essa ponte, sem precisar de mais do que o trabalho de câmara meticuloso de João Ribeiro e de um trabalho de som extraordinário (António Figueiredo, Rafael Cardoso e Elsa Ferreira). A primeira coisa que nos vem a cabeça é o alucinante plano final do Profissão: Repórter de Antonioni, mas à medida que se desenvolve a luta contra os elementos do velho que vai buscar água e do menino que procura fogo, as referências mais evidentes são o Gerry de Gus van Sant e o mestre húngaro Béla Tarr – não é por acaso, Van Sant nunca escondeu a sua dívida a Tarr, e Gil Mata estudou com o húngaro na Film Factory em Sarajevo.
Mas Drvo é bicho próprio, mesmo que essas referências lá estejam: é uma história quase muda de fantasmas que se procuram reconfortar mutuamente, condenados a errar pela noite gelada em busca um do outro, em busca de uma qualquer razão, de um qualquer movimento que explique tudo. É uma viagem espectral, desolada, para lado nenhum, só que vista pelos olhos dos fantasmas. Mais uma, no meio de todas as histórias de fantasmas na Berlinale 2018.