Abandono do território, abandono do país
A reorganização administrativa é uma exigência estratégica e um movimento prioritário de socorro.
O que aconteceu é consequência de largos anos de abandono. Passam quatro meses sobre os dois/três dias de inferno que fustigaram extensas regiões a norte do Tejo, já no Outono. Vão oito meses passados sobre Pedrógão Grande no fim da Primavera. Pelo meio, múltiplos incêndios atingiram vários municípios. Os mais trágicos foram os 17 de Junho e 15 de Outubro que mais lembramos: mataram 112 pessoas; só em Pedrógão, 66. A maioria dos 112 morreu em estradas, feitas ratoeiras. Destes, 47 na fatídica EN 236.
Nunca morrera tanta gente nas matas. Mesmo noutros anos devastadores, como 2003 e 2005. Nunca tinham morrido civis desta maneira. As vítimas, em número muito mais baixo do que as deste ano, provinham geralmente de envolvidos no combate ao fogo, que, com coragem, enfrentam o risco, como os 25 soldados que morreram no incêndio da serra de Sintra em 1966, a maior tragédia até 2017. Agora, houve casos assim — que a todos causam luto e dor —, mas a quase totalidade das vítimas proveio de cidadãos comuns, mortos em suas casas ou queimados nas estradas que confiavam ser a salvação.
Estes incêndios foram, sem dúvida, o rasto de condições climatéricas extremamente severas: anos consecutivos de seca, temperaturas muito elevadas, conjugadas com humidades muito baixas, massas de ar quentíssimas e ventos adversos. Houve imprevidência na protecção civil. Mas há um longo declínio de incúria. Só é possível termos empurrado para a morte 112 pessoas, naqueles territórios e naqueles dias, por muita incúria acumulada e impotência crescente.
Quem revê as últimas décadas de Portugal e a gritante falta de políticas de território por parte de governos e maiorias pode ecoar o célebre poema anti-nazi de Niemoeller ou anti-racista de Brecht: primeiro, vieram pela escola; depois, foi o tribunal; depois, o centro de saúde; depois, a agência bancária; quando o fogo veio buscar-me, já não havia ninguém para me socorrer, nem estrada segura para fugir.
Este país que arde é o país abandonado, o país tristemente deixado ao abandono. É o país empurrado para ser deserto. Nos últimos 40 anos, realizámos proeza invejável: despovoámos o que os nossos reis povoaram. Além das políticas de território que nunca deveríamos ter deixado, precisamos também já de políticas de povoamento. Sem umas e outras não vamos lá — é a convicção que consolidei ao longo dos anos, em especial, quando líder partidário, nas Jornadas do Interior e Congressos do Mundo Rural que promovi. Ou acorremos de forma permanente e organizada a estes territórios, uma das nossas riquezas e guardiões de muitos recursos, ou não vamos lá.
Apesar das medidas acertadas que aplicarmos agora, se a estrutura da Administração não mudar, a ausência, a distância e o descaso voltarão. Tudo tornará a falhar. Choraremos novas tragédias. Estes territórios não precisam só de medidas técnicas; necessitam de reconstrução da confiança e reabilitação das suas capacidades. Necessitam de perceber que o abandono acabou. Se não... se não, os mais novos que puderem vão-se embora; ficarão os velhos, a guardar espaços vazios, até que o fogo os leve outra vez. O Presidente da República apontou-o, a seguir a Pedrógão: “Um sentimento de acrescida injustiça, porque a tragédia atingiu aqueles portugueses de quem menos se fala, de um país rural, isolado, com populações dispersas, mais idosas, mais difíceis de contactar, de proteger e de salvar.” É isto mesmo. Em Outubro, essas palavras eram o retrato doutras terras martirizadas: Oliveira do Hospital, Vouzela, Tábua, Arganil, Penacova, Pampilhosa da Serra, Seia, Santa Comba Dão, Nelas, Carregal do Sal, Tondela, Oliveira de Frades.
Tudo aconteceu — e continuará, se o não corrigirmos — porque, nas últimas quatro décadas, destruímos a administração territorial do país. Tínhamos os distritos. A Constituição previu, no seu lugar, as regiões administrativas. O que aconteceu? Não implantámos estas e arrasámos aqueles. Foi este o abandono feito ao país.
Num debate na SIC, a 16 de Outubro, em plena crise dos incêndios, Marques Mendes opinou que a regionalização não resolveria nada, fazendo ironia com ser apenas tema de interesse para ex-autarcas após o limite de mandatos. Paulo Portas, dias antes, na TVI, resolvera comentar a crise da Catalunha, elogiando os portugueses por terem chumbado a regionalização. O tema é mais sério do que estas cotoveladas populistas e fora de propósito. Dá até para uma larga história, começando no facto de as regiões administrativas estarem na Constituição, com fonte nos projectos de PPD e CDS, em 1975. Mas, embora eu não tenha dúvidas de que estaríamos muito melhor se a regionalização tivesse sido feita em devido tempo — isto é, nos anos 1980 —, não afirmo nem insinuo que se devem ao referendo de 1998 os 112 mortos que devem pesar-nos na consciência e na memória. Não digo isso. Mas digo que se devem a nada ter sido feito para resolver o problema de outra forma, de então para cá. Vinte anos de declínio e abandono não chegavam já? Somámos-lhes mais outros 20 anos de descaso.
Portugal sempre teve, desde há séculos, com nomes diferentes e como noutros países, um patamar intermédio de Administração entre o município e o poder central. Agora, é tudo uma desordem, instabilidade e ziguezague, um rigorosamente nada. Em termos de capacidade administrativa, de patamar comum para sediar unidades periféricas do Estado e competências descentralizadas, semeámos o deserto. Quem semeia o deserto, colhe desertificação. Foi isso.
Apesar do declínio demográfico de Portugal desde 2010, a população nacional registava, em 2016, um aumento de 4,8% face a 1981. Mas, na faixa interior, a população caiu 23,9% nesse período. É o retrato da desigualdade. Nalguns núcleos, é pior: no trio Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos, Castanheira de Pêra, alvejado a 17 de Junho, a perda de população foi de 38,7% nos mesmos 35 anos. São territórios cada vez mais frágeis. Muito vulneráveis.
Só a administração de proximidade, mais próxima que o Estado e acima da Administração Local, com escala e maior capacidade de integração, articulando descentralização e desconcentração, poderá dar respostas de continuidade aos problemas, desafios e oportunidades desses territórios e devolver confiança às populações, como é reclamação de associações e autarcas. Tenho, por exemplo, quase a certeza de que a tragédia da EN 236 não teria ocorrido com a administração de proximidade da antiga Junta Autónoma das Estradas. E o que digo desta tragédia específica digo de outras.
A solução esteve sempre diante dos olhos: são os distritos. É, aliás, o que a Constituição diz: “Enquanto as regiões administrativas não estiverem concretamente instituídas, subsistirá a divisão distrital no espaço por elas não abrangido.” Não precisamos de inventar. É neste quadro que devemos reestruturar o aparelho administrativo, desconcentrado e descentralizado, como a Constituição estipula: “governador civil, assistido por um conselho, [a] representar o Governo e exercer os poderes de tutela na área do distrito”; e “em termos a definir por lei, uma assembleia deliberativa”. Este é o quadro urgente, indispensável a pormos termo ao abandono de extensas zonas do país e a ancorarmos as políticas de território e de povoamento de que necessitamos. A reorganização administrativa é uma exigência estratégica e um movimento prioritário de socorro. E um acto de inteligência.