Guterres, honoris causa, avisa para a falta de regulação das novas tecnologias
“O que hoje fundamentalmente interessa no sistema educativo não é o tipo de coisas que se aprendem, mas a possibilidade de aí se aprender a aprender”, salientou o secretário-geral da ONU na cerimónia da Universidade de Lisboa.
As alterações climáticas que “continuam a andar mais depressa que nós” e a falta de mecanismos regulatórios para as novas tecnologias, em especial para a chamada internet das coisas, são os maiores desafios que a humanidade enfrenta actualmente. Para ambas é preciso acção e soluções urgentes, que congreguem governos, empresas, comunidade científica, universidades e sociedade civil, apelou esta segunda o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, na cerimónia da atribuição do seu doutoramento honoris causa pela Universidade de Lisboa.
Num discurso de 24 minutos em que falou do seu percurso académico e sobre os principais desafios que o mundo enfrenta – e que ele próprio, como líder da ONU, procurar ajudar a resolver -, António Guterres deixou também uma mensagem sobre o ensino, salientando que “o que fundamentalmente hoje interessa nas universidades e no sistema educativo não é tanto o tipo de coisas que aí se aprende, mas a possibilidade de aí se aprender a aprender”. E avisou que “é fundamental todos termos a noção de que a política só faz sentido para concretizar um projecto em que acreditemos” porque “o poder só faz sentido pelo serviço; o poder pelo poder não tem qualquer justificação – embora por vezes isso também não seja facilmente compreendido”.
Um dos desafios essenciais da educação – mas também ao nível político nacional e internacional - é esta preparar-se e preparar os jovens para as alterações constantes da vida em sociedade, na economia e nos mercados de trabalho. O antigo primeiro-ministro lembrou que tem três netas com menos de dez anos e disse não fazer a “menor ideia do que elas farão ou de como será o mundo” quando elas tiverem a sua idade (68 anos). “Mas há uma coisa que sei: é que o seu êxito dependerá essencialmente das oportunidades de educação que vão ter, da capacidade que lhes derem para serem capazes de se adaptar à mudança, de desenvolver novas formas de intervenção na sociedade, novas actividades profissionais. Porque seguramente os conteúdos concretos que vão ter na escola vão estar completamente ultrapassados quando exercerem as suas actividades profissionais ou outras formas de intervenção na sociedade.”
Sobre as alterações climáticas, “apesar de haver ainda quem, com altas responsabilidades políticas, duvida” da sua existência – leia-se Donald Trump, António Guterres admitiu faltar “ambição para aplicar os acordos de Paris e para reconhecer que não são suficientes” porque levariam ao aumento global de três graus no final do século, quando o que é necessário é diminuir esse aquecimento “em 1,5 a dois graus”.
“Estamos a ver já as consequências trágicas de não estarmos a ganhar a corrida”, lembrando por exemplo a frequência e intensidade dos furacões e a sua devastação. Guterres acredita que “se nem sempre há boas notícias no plano político, a verdade é que, graças aos engenheiros, há hoje muito boas notícias no plano das condições materiais e económicas” para inverter a situação com a solução das energias alternativas. Mas é preciso “vontade e visão política suficiente”, apontou. “Se não foi por falta de pedra que acabou a idade da pedra, não é por falta de carvão e de petróleo que acabará a era dos combustíveis fósseis.”
As maiores expectativas para melhorar a vida da humanidade, potenciar o crescimento das economias e desenvolver os países estão nos domínios da engenharia, da ciência e da tecnologia – as áreas da predilecção do engenheiro electrotécnico formado no Instituto Superior Técnico com 19 valores, que confessa que nunca exerceu e que terá mudado dois ou três fusíveis na vida. Mas é também nessas áreas que se encontram hoje os “dilemas éticos mais dramáticos” para o futuro do planeta, em especial nas tecnologias da informação e da comunicação, e especificamente no ciberespaço.
“Hoje existem, de forma mais ou menos escondida, episódios de ciberguerra entre Estados e, pior que isso, não há nenhum esquema regulatório em relação a esse tipo de guerra.” Ou seja, não é claro que as convenções de Genebra e o direito internacional humanitário se apliquem à ciberguerra tal como se aplicam numa guerra tradicional com cercos e bombardeamentos e em que se salvaguarda e protege o trabalho humanitário em relação aos civis, por exemplo.
“Estou absolutamente convencido que, ao contrário do passado, a próxima guerra entre dois Estados vai ser antecedida por um maciço ciberataque com o objectivo de destruir as capacidades militares – sobretudo comando e controlo de comunicação do inimigo - e de paralisar as suas infraestruturas básicas, nomeadamente redes eléctricas”, prevê António Guterres.
E aponta os engenheiros que “tentam proteger-nos com acções meritórias” e outros que se deixam instrumentalizar por “organizações criminosas e terroristas” que aproveitam as potencialidades da chamada deep web ou dark web. “Na internet das coisas também não há qualquer mecanismo regulatório ou protocolo que defina regras básicas para garantir que a internet seja um instrumento fundamentalmente ao serviço do bem.” Guterres colocou ainda o ónus do lado dos cientistas que, disse, “têm a obrigação de pôr em cima da mesa” todos os dilemas éticos, dando como exemplo também a engenharia genética, que actualmente se encontra numa situação em que “tanto pode abrir a porta a extraordinárias condições de vida no planeta como pode ser uma ameaça à nossa espécie”.
Apesar de reconhecer que há um “total divisão e incapacidade” global para se chegar a essa regulação, o secretário-geral da ONU defende que “só juntando governos, empresas que promovem as novas tecnologias, comunidade científica, universidades e sociedade civil será possível encontrar regras mínimas para que as novas tecnologias sirvam o futuro da humanidade de forma positiva”.
O “herdeiro da História e um fazedor da História”
Marcelo Rebelo de Sousa não poupou nos elogios a Guterres que foi ovacionado por duas vezes pela plateia da Aula Magna onde não faltaram, por exemplo, Jorge Sampaio, António Costa, Ferro Rodrigues, alguns ministros, secretários de Estado, deputados, reitores de outras universidades nacionais e estrangeiras, ou diplomatas. O Presidente da República voltou a usar alguns termos do tempo da nomeação de Guterres para secretário-geral da ONU, falou das duas dimensões do “português e do homem universal”, e vincou o apego do socialista à sua nacionalidade portuguesa.
“O português que nunca o deixou de ser orgulhosa e assumidamente nas raízes profundas, na compreensão militante, na ambição de ir mais longe na educação, na formação, na inovação científica e tecnológica, no crescimento económico, na justiça social e no desenvolvimento humano.” O Presidente mencionou o “privilégio pessoal e institucional” por assistir de perto ao sucesso de Guterres e falou da admiração de 50 anos que tem por ele.
Descreveu-o como o “governante nacional porventura mais consensualmente amado desde sempre em democracia”, que olha para Portugal como “expressão viva de pessoas irrepetíveis” e não apenas como frios “dados estatísticos”; e como a “personalidade, de longe, mais qualificada” da geração de ambos. Falou da sua “rica e multifacetada vivência, do carácter, inteligência, capacidade de criação de ideias e de mobilização das pessoas”, do “expoente internacional capaz de a todos chegar”.
Antes, o presidente do Instituto Superior Técnico, que propôs a agraciação de António Guterres com o doutoramento honoris causa, lembrou algumas histórias do estudante que teve a nota de ingresso mais elevada do seu ano e também a nota mais alta atribuída no final do seu curso - 19 valores. Como a vez em que, no laboratório de eléctricas provocou um curto-circuito que fez rebentar o quadro e deixou um pavilhão inteiro às escuras; ou quando estudava quântica com os colegas e chegava primeiro à solução dos problemas enquanto ouvia Beethoven e passeava, alheado, pela sala.
Recordou a sua sagacidade nos estudos, os "dotes de orador" nas RGA (reuniões gerais de alunos) nos conturbados finais dos anos 60, a sua "sensibilidade humanística" exponenciada pelas cheias de 1967, a sua influência decisiva como governante, com Mariano Gago, no impulso à ciência, o seu papel nas questões de Timor e de Macau. "O seu exemplo mostra que o céu é o limite e que todos podem perseguir os seus sonhos", vincou Arlindo Oliveira.