Teremos sempre Marselha, diz Christian Petzold

Com Transit, o mais importante cineasta alemão da actualidade, autor de Barbara e Phoenix, assina uma proposta radical de romance de guerra no melhor filme que vimos em Berlim até agora.

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Transit, de Christian Petzold DR

Em Barbara, que lhe valeu o Urso de Ouro de realização na Berlinale de 2012, o alemão Christian Petzold contava o dilema moral de uma mulher na antiga Alemanha de Leste, presa entre ficar em nome do amor num país no qual não acredita e partir em nome de uma liberdade que lhe pode fazer perder a diferença que ainda podia marcar. No filme seguinte, Phoenix, Petzold filmava uma mulher literalmente renascida das cinzas, sobrevivente dos campos de concentração, dividida entre ficar em Berlim, em busca do homem que ainda ama mas que a entregou, e partir para uma terra prometida na qual não acredita. 

Agora, com Transit (competição), o mais importante cineasta alemão da actualidade adapta um romance da escritora Anna Seghers (1900-1983), sobre os dilemas morais, humanos, éticos vividos durante a Segunda Guerra Mundial. É uma história de refugiados em fuga ao regime nazi e em busca de passagem para fora da Europa, de gente que fica em Marselha, obrigada a esperar por uma salvação que talvez não exista, mas que só pensa em partir. Percebe-se a ligação temática aos filmes anteriores, mas a aposta de Petzold em adaptar, hoje, Transit é muito mais radical na maneira como enfrenta a fractura existencial criada no coração da Europa pela Segunda Guerra Mundial: Transit passa-se hoje. Ou antes, num hoje tão reconhecível quanto abstracto, numa Marselha com graffiti e população multicultural mas sem telemóveis nem computadores.

É por aí, nessa reinvenção do romance que pede ao espectador uma “suspensão da descrença” radical, que Transit – um dos filmes mais aguardados do festival deste ano – tem dividido a crítica. De um lado, aqueles que aplaudem o gesto fracturante do realizador ao tornar presente a herança do nacionalismo invertendo a crise dos refugiados (não são eles que querem entrar, somos nós que queremos sair); do outro, aqueles que consideram a experiência falhada, para quem o gesto não passa de uma declaração de intenções, certamente sincera mas desequilibrada.

Qualquer coisa de Casablanca

Estamos do lado dos que aplaudem Transit, que aliás é (para já) o melhor filme de uma competição que tem corrido morna mas melhor do que se esperaria. Porque não se trata de falar dos refugiados ou dos perseguidos como uma classe, como um grupo, mas sim de abraçar a sua singularidade individual, as suas emoções, as suas personalidades. Devolver tudo à dimensão pessoal onde cada um se cria e se cristaliza – e os filmes anteriores de Petzold sempre nos disseram que o pessoal é inseparável do público, que o pessoal é também ele político. É inescapável que assim seja, porque são sempre filmes sobre as escolhas, sobre medir riscos, equilibrar o irracional, optar e seja-o-que-deus-quiser.

Ainda por cima, Transit abraça precisamente a “suspensão da descrença” ao instalar o romance que parece traçado pelo destino entre Franz Rogowski e Paula Beer, numa lógica narrativa que parece herdada do grande cinema de Hollywood. Há, realmente, qualquer coisa de Casablanca aqui – mas de um Casablanca onde a esperança optimista no triunfo da justiça é substituída pelo brutal pragmatismo de gente que aprende a viver sem esperança, consciente que mesmo a diferença que possam fazer é algo de mínimo e quase inútil no absurdo que os rodeia. Ou de um Casablanca feito nos tempos áureos do cinema político europeu por Francesco Rosi ou Costa-Gavras. Petzold faz deste encontro entre a cinefilia pura e dura e a desconstrução límpida e meticulosa do seu cinema um filme absolutamente espantoso, espécie de ponto de fuga onde todas as suas obras anteriores vão dar (e, como de costume, os seus talentos de director de actores são impecáveis, mesmo que Paula Beer não seja outra Nina Hoss). Que sim, fala de refugiados, mas que fala na verdade de refugiados emocionais, gente cujas emoções estão muito mais em trânsito do que os seus corpos. (Uma cena em que Rogowski se recorda de uma velha canção de embalar é absolutamente devastadora – é o ponto de viragem a partir do qual Transit entra numa voragem de eventos e emoções que ganha ou perde o espectador.)

Não sabemos onde a estrada leva estas personagens – mas é a Road to Nowhere dos Talking Heads que nos persegue enquanto corre o genérico final. Teremos sempre Marselha. Que o júri de Tom Tykwer assim o saiba reconhecer.

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