A armadilha da política à direita face a um PS moderado
A ocupação do centro pelo PS – e não haja ilusões que o “Governo da esquerda” da “geringonça é hoje efectivamente um governo centrista – está a torná-lo cada vez mais no partido que atrai o eleitorado moderado.
Como quem me lê há algum tempo sabe, a classificação direita-esquerda nunca foi muito de meu agrado. É mais histórica do que actual, introduz várias confusões no plano político, não é fácil de definir a não ser pelos extremos, ou pela redução ao par optimismo-pessimismo antropológico, e é mais afectiva e volitiva do que factual. Mas, seja como for, por muito que eu não gostasse da distinção, agora sou “obrigado” a usá-la, exactamente quando uma acentuada radicalização da vida política portuguesa a tornou mais simples e… mais pobre. Um dos aspectos desse empobrecimento foi o retorno a classificações mais simplistas, e pouco há a fazer.
De um modo geral, sabemos se um grupo político ou um político é da esquerda ou da direita porque sabemos mais coisas sobre ele que nos ajudam a colocá-lo de um lado. Nuns casos, a distinção faz-se na religião ou nos costumes, noutros na posição face ao Estado, noutros no olhar “social” que cada um tem. Mas muitas destas distinções estão desfocadas. Por exemplo, há gente à direita que defende a liberalização das drogas ou que se considera com orgulho membro da comunidade LGBT, e gente à esquerda que é muito reaccionário nos costumes ou que é pessoal e profissionalmente muito capaz na defesa do “capital”. Não é preciso ir mais longe do que os EUA para perceber que grupos como os libertários são ao mesmo tempo contra qualquer sistema de segurança social e muito próximos dos anarquistas em matérias de sociedade.
Outro aspecto que contribui para esta confusão, se se quiser ser rigoroso, é a posição face ao “patriotismo”, mesmo definido no seu mínimo sentido de preocupação em não dissolver os interesses nacionais num qualquer “internacionalismo”, que os ignore ou prejudique. Ora, tradicionalmente, a direita colocava-se do lado “patriótico” e associava-se às instituições que representavam esse lado, como era o caso das Forças Armadas. O extremo dessa política é o Make America Great Again e a ridícula parada que Trump quer fazer para se colocar num papel de generalíssimo. Ora, hoje, PS e PSD são no seu “europeísmo” os partidos internacionalistas, tendo aceitado restrições dramáticas à soberania nacional, enquanto o PCP ficou isolado na sua afirmação do “patriotismo”. E, mesmo hoje, um partido como o PS está mais próximo das Forças Armadas e é mais “atlantista” do que o PSD, que, pelas suas escolhas para ministros da Defesa e excessivos cortes orçamentais, mostrou desleixo face às Forças Armadas. Está tudo trocado se ficarmos apenas pela dicotomia esquerda-direita.
Também na história política portuguesa depois do 25 de Abril a distinção esquerda-direita, fora de um uso identitário em grande parte testemunhal, conheceu um considerável ocaso. Saiu desse ocaso – em que se era comunista, centrista, social-democrata, socialista, maoísta, como identidades determinantes – com o duplo processo da criação do Partido Popular no CDS e do Bloco de Esquerda, em que quer uns, quer outros começaram a usar a classificação para se identificarem. Os efeitos são múltiplos, e um deles é a bipolarização, com a definição de afinidades confrontacionais. O PS, o Bloco de Esquerda e o PCP passaram a ser a “esquerda”, o PSD e o CDS, a “direita”. O centro foi esmagado e encolheu e tornou-se um lugar mal frequentado. A principal “vítima” deste processo foi o PSD cujos dirigentes dos últimos anos, antes, com a troika e depois da troika, passaram a sentir-se e a sentar-se na “direita” sem qualquer sobressalto ideológico e programático e deslocaram-se para longe do posicionamento centro-direita-centro-esquerda do passado. O último dirigente do PSD que conscientemente não queria situar o partido como cabeça de uma frente de direita foi Cavaco Silva, na tradição de Sá Carneiro.
O PSD ainda há-de compreender da pior maneira que um dos seus problemas foi deixar o PS ocupar o centro político, com um Governo de frente de esquerda, no qual a condução da política é essencialmente centrista. Por seu lado, ao sair do centro político, um partido como o PSD altera não só a sua identidade genética como fica preso a um sistema comunicante de temas e argumentos que é capturado pelo pensamento, os temas, os interesses e os objectivos da direita, que precisa do PSD para ganhar as eleições, mas que pouco o respeita como partido. O PSD acaba por ser o monstro que parte toda a loja de porcelana, porque tem muito mais eleitores do que o CDS ou a nova direita radical do Observador, mas é a eles que tem na cabeça e no comando. Vai recrutar cada vez mais à direita, vai dar voz e papel a muitas posições que nada têm a ver com a sua tradição, e tornar-se incapaz de travar uma direita populista e agressiva que anda por aí nas redes sociais e que representa sempre uma reserva que pode ser mobilizada da pior maneira.
Ora, a ocupação do centro pelo PS – e não haja ilusões de que o “Governo da esquerda” da “geringonça” é hoje efectivamente um Governo centrista – está a torná-lo cada vez mais no partido que atrai o eleitorado moderado. O modo como foi feita oposição depois da queda do Governo Passos Coelho não se baseava tanto numa análise errada da situação económica, mas mais numa política que acabava por ser tribunícia e que, por isso, parecia radical a muito eleitorado que no passado apoiou o PSD e hoje se afastou dele. O PSD erra se pensa que a aceitação e popularidade que se vêem nas sondagens do PS sãp apenas devidas a manipulações propagandísticas, e não compreende que hoje a maioria do eleitorado moderado que lhe dava no passado não só maioria como capacidade reformista prefere o PS e não tem medo da “geringonça”.
Há apenas um problema e não é pequeno: é que o retorno à dualidade frente de esquerda-frente de direita é impeditiva de haver reformas. E é aqui que o PSD se pode colocar de forma mais eficaz como partido reformista, mas a condição fundamental é que não pode cair nos cantos de sereia da direita. É por isso que, contrariamente ao que se tem dito, adversários e jornalistas, a mudança de atitude de Rio quanto a entendimentos com o PS é até agora a sua principal vantagem política, a única que pode apaziguar os eleitores moderados que poderiam então escolher de novo ao centro. E é aí que reside a grande fragilidade da “geringonça”: ela bloqueia as reformas necessárias. Mas também é aí que a deslocação do PSD para a direita tem o mesmo efeito: bloqueia também a capacidade reformista do PSD.
A ideia de que o objectivo único dos partidos é ganhar o poder é atractiva para os aparelhos e para os militantes clubistas, mas é vista como insensata pelos eleitores, a começar por muitos eleitores que se afastaram do PSD nestes anos de radicalização. E, contrariamente ao que se diz, é mais eficaz em termos eleitorais do que se pensa. O PSD só cresce se se apaziguar com um eleitorado moderado e que quer reformas, e que o PSD abandonou. E mesmo os resultados tão gabados do PSD em 2015, quando analisados, revelam uma considerável usura política e social, que ainda serviu para ser o primeiro partido, mas que foi insuficiente para contrariar a perda da maioria absoluta, que é o único modo como se pode governar se o confronto for direita-esquerda. Costa percebeu-o e Portas também, Costa fez a “geringonça” e Portas foi ganhar dinheiro como lobista internacional. E o PSD ficou todos os dias a perder eleitores, sem perceber nada do que se estava a passar. Agora ou continua na mesma, ou muda. E não é nada fácil.