Manuel Clemente, um paradigma: abandonar o tempo, perder o mundo
Incapaz de dar respostas ao desafio da liberdade fomentada por Francisco, Manuel Clemente é a imagem de uma Igreja que se refugia na tradição.
Momentos há em que uma única palavra, uma pequena expressão, define todo um mundo. As recentes palavras de Manuel Clemente, cardeal patriarca de Lisboa, figura cimeira do catolicismo nacional, ganharam essa capacidade de ir muito mais além naquilo que se recepcionou delas. Não é que Manuel Clemente não tenha dito o que disse. Mas o mais importante foi a leitura que se fez, como se uma gota tivesse deixado um copo já cheio no limiar de entornar. E entornou.
Francisco, bispo de Roma, Papa, lançou talvez um dos mais complexos desafios à Igreja que lidera. Talvez sem o perceber, o Sumo Pontífice juntou ao desafio de partida que residia na questão do matrimónio complexo das sociedades de hoje e, por acréscimo, de toda uma moral familiar tornada como que sacramento, um outro desafio. Sim, a esse desafio de doutrina e pastoral, o Papa decidiu que não se faria doutrina, que a há muita, mas que cada comunidade faria o seu “trabalho de casa”, reflectindo e orientando.
Em Portugal, depois do Sínodo da Família, Jorge Ortiga, arcebispo de Braga, lançou o mote desejado: uma visão e uma postura integradora respondia à percepção maioritária face ao que Francisco pedira. Surgiu uma mensagem de acolhimento potencialmente integradora. O aplauso foi unânime.
Há poucos dias, Manuel Clemente, como bispo de Lisboa, apresentou à sua comunidade o seu documento. Depois do que sucedera com a tentativa de actualização do processo em Braga, e já com um lastro de várias outras posturas significativamente conservadoras, Manuel Clemente foi alvo de um role imenso de críticas.
De facto, começo por dizer como me parece significativo que num país laico se tenham dedicado a criticar as palavras de um cardeal tantos não religiosos. A questão é puramente religiosa, não é cívica nem de dimensão nacional. Apenas à Igreja que se enquadra na liderança católica ela diz respeito, sendo que não afecta, nem a maioria dos católicos, quanto mais uma parte significativa dos nacionais. Empolou-se uma questão que nos mostra que a sociedade supostamente laicizada ainda não se libertou da tentação da crítica fácil ao catolicismo, consolidando-o como grande referência nacional — a grande parte das religiões, e especialmente das tradições cristãs, apresentam questões de moral familiar e sexual muito mais complexas, mas só à igreja católica os holofotes das crónicas alumiam em tom de crítica.
O meu ponto central não são as críticas ao conteúdo em si, mas ao que ele nos mostra como processo de definição da responsabilidade teológica dentro de uma estrutura muitíssimo sólida. Ao propor que os sacerdotes avancem com a sugestão da abstinência sexual aos casais “irregulares”, Manuel Clemente está, simplesmente, a dar significado e a reafirmar uma teologia que desde o século I ou II defendia que os casais convivessem como irmãos, não pecando. É o que encontramos em vários textos de finais do século I, como pedagogia para preparação para o segundo advento, que seria próximo. Obviamente, esta teologia não teve muitos cultivadores, o que se comprova pelo contínuo aumento da população cristã ao longo dos dois milénios seguintes. Contudo, o imaginário da castidade sempre se manteve no cristianismo, especialmente no católico, como um horizonte de perfeição perante a teologia do pecado original.
Portanto, há coerência nesta afirmação de Manuel Clemente. A nossa reflexão, estando fora da Igreja Católica, deve residir, não na adequação aos seus membros, interna, desta postura que, obviamente, só é aceite por quem quiser e que esteja ou queira estar integrado, mas sim nos mecanismos que se percebem na tomada de decisão.
Francisco, recuperando a dinâmica interna das comunidades do cristianismo antigo, lança às comunidades a capacidade de decidir. Libertos do espartilho de directrizes claras, perante o incómodo do decidir, escolher e reflectir, a instituição, valorizando a tradição, encontra resposta fácil e segura no conservadorismo. E é este o problema da liberdade numa instituição altamente hierarquizada e sacramentada, habituada a receber ordens muito claras e pouco ou nada questionáveis.
De facto, fomos informados que Manuel Clemente apenas replicara uma indicação de João Paulo II, que reactualizara a castidade dos séculos I e II. E o mais interessante encontra-se exactamente nisso: a resposta ao desafio de Francisco é encontrada num Papa anterior, não numa resposta nova, inovadora. Incapaz de dar respostas ao desafio da liberdade fomentada por Francisco, Manuel Clemente é a imagem de uma Igreja, de um paradigma, que se refugia na tradição, no que a hierarquia já ditou, mesmo que agora não dite.
As consequências desta nova postura de Francisco, talvez aquilo em que ele é, realmente, inovador, encontram-se na reacção a este seu apelo à reflexão e responsabilização dos bispados. Ironicamente, ao dar liberdade aos bispos, indo ao encontro do cristianismo primitivo, Francisco faz sair da sombra o conservadorismo latente pela incapacidade da actualização e pela valorização da tradição.
Hoje, perante as mutações que o mundo tem a uma velocidade estonteante; hoje, perante uma estrutura familiar também em clara alteração, a Igreja de Roma reencontra a segurança nas respostas conservadoras. Se nas décadas de 1960 e 1970 do século passado eram os meios ditos progressistas que dinamizavam as comunidades católicas, hoje são os grupos claramente conservadores, constituídos por crentes jovens, bem colocados profissionalmente, e adoptantes de uma moral familiar que se revê em Manuel Clemente.
Poderemos mesmo afirmar que a liberdade potenciada por Francisco permite o lugar à normalidade do conservadorismo. É uma ironia que seja através da reacção a um desafio de Francisco que se torne visível e se perceba a dimensão estatística significativa do percurso de conservadorismo na moral familiar e sexual lançada por João Paulo II.