Eis a nova casa das bonecas de Wes Anderson

Berlim abre em alto nível com Ilha dos Cães, animação dirigida pelo autor de Grand Budapest Hotel e Um Peixe Fora de Água, como se fosse Kurosawa a filmar 2007 em 1962 e com um subtexto político “que é menos Japão e mais Texas”.

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Wes Anderson em Berlim LUSA/PHILIPP GUELLAND
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Wes Anderson em Berlim,Wes Anderson em Berlim LUSA/CLEMENS BILAN,LUSA/CLEMENS BILAN
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Reuters/AXEL SCHMIDT
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LUSA/SASCHA STEINBACH

Já sabíamos que Wes Anderson não é uma pessoa “do nosso tempo”. Depois da Mitteleuropa nostálgica e impossível do Grand Budapest Hotelque abriu Berlim faz agora quatro anos —, ei-lo a filmar um Japão retrofuturista “daqui a 20 anos”, como diz o narrador logo à entrada de Ilha dos Cães, que abre em alto nível Berlim 2018.

“O que queríamos ter feito era o filme futurista que Kurosawa teria feito em 1962”, responde o realizador americano num encontro com a imprensa a seguir à apresentação oficial de Ilha dos Cães em Berlim. “Um filme que dissesse logo ao início: estamos no ano 2007. Mas depois não foi isso que fizemos...”

Se os muitos fãs de um dos raros “autores” americanos que se reconhece à légua receavam que Ilha dos Cães fosse diferente por ser um anime feito com marionetas em stop-motion (fotograma a fotograma — pensem em Wallace & Gromit), não têm razões para ter medo nenhum do novo filme (que deverá chegar às salas portuguesas em fins de Abril). O cinema de Anderson, com todo o seu preciosismo maníaco e fastidioso, sempre teve qualquer coisa de “casa de bonecas” — desde a mansão dos Tenenbaums ao submarino de Steve Zissou em Um Peixe Fora de Água, passando pela Índia do Darjeeling Limited ou o Grand Budapest Hotel propriamente dito, é um cinema de artifícios lúdicos, com personagens com qualquer coisa de Professor Pardal. Um cinema que coloca o espectador num estado de deslumbramento quase infantil perante as suas engenhosas construções cinéfilas que remetem para outros tempos da sétima arte.

Ilha dos Cães, segunda incursão de Anderson na animação depois do Fantástico Sr. Raposo, inventa do zero uma nova “casa” literalmente das “bonecas”, um retrofuturismo nipónico steampunk em que o anime japonês se cruza com “os filmes urbanos de Kurosawa” e referências a Visconti, Chuck Jones (o imortal criador do Bip-Bip e do Coiote) e Hayao Miyazaki. Tudo, já se viu, muito moderno – afinal, muita da pesquisa visual relacionava-se com o Japão dos anos 1960. “Mas a verdade é que muito desse material só aparece se tivermos um teclado japonês,” ri-se o realizador. “Tinha como mote manter o filme poético, misterioso, sobrenatural.” A poesia nota-se (por exemplo) num peculiar interlúdio romântico ao luar que parece saído de um qualquer film noir dos anos 1950, do realismo poético francês ou de A Dama e o Vagabundo da Disney. Os cães, claro, “são pessoas”, dirá às tantas Anderson – “exilados, devido a um movimento político que animou a populaça contra eles. O filme não é apenas inteiramente sobre cães, claro”.

Não se trata de antropomorfizar os animais para serem humanos, mas de usar os cães numa alegoria política que, no entanto, não começou como tal, recordando que a ideia original de Ilha dos Cães, nascida do “embate” entre uma ideia para um filme sobre cães abandonados e outra para um filme ambientado no Japão, data de há mais de quatro anos.

Para já não falar de o processo de criação de uma animação de marionetas ser particularmente lento (para ele, o trabalho dos animadores é como “assistir a um guitarrista virtuoso a tocar em câmara ultralenta”). A política de Megasaki City, onde o presidente da câmara exilou todos os cães para a lixeira da cidade na sequência de uma epidemia de doenças, é inventada do zero. Uma política que Anderson diz sorrindo ter “menos que ver com o Japão e mais com o Texas, de onde [vem]” – os cães são vítimas de uma campanha fabricada pelo complexo militar-industrial que dirige corruptamente a cidade, colocados como refugiados num ermo que lhes permitirá serem esquecidos e ignorados.

 

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Ilha dos Cães dr

Atari, órfão de 12 anos que foi adoptado pelo presidente, marimba-se para os adultos e parte para a Ilha dos Cães para salvar o seu fiel cão de guarda, Spots, enquanto uma estudante de intercâmbio faz o trabalho de investigação que a imprensa não faz. Se se lembrarem as crises dos refugiados, dos nacionalismos que têm vindo a ressurgir, da demagogia política, a referência pode bem não ser inteiramente inocente, embora Anderson admita: “Esse espelho dos nossos dias surgiu à medida que o filme foi sendo feito, porque o mundo mudou enquanto estávamos a fazer este filme.” E, tal como Grand Budapest Hotel já recorria a Stefan Zweig para falar do fim de um mundo civilizado, Ilha dos Cães fala de coisas muito sérias com muitas gargalhadas.

Por falar em gargalhadas, a “família” de actores de Anderson (com alguns recém-chegados à mistura) respondeu toda à chamada para dar voz ao filme – Edward Norton, Bill Murray, Jeff Goldblum, Bob Balaban, Tilda Swinton, F. Murray Abraham, Harvey Keitel, Frances McDormand, Liev Schreiber, Yoko Ono, Greta Gerwig, Ken Watanabe, Fisher Stevens, Courtney B. Vance… Na conferência de imprensa, Anderson diz rindo: “Para um filme de animação não existe a desculpa do “ah, não posso”, porque podemos gravar a voz literalmente em qualquer lado!” (“Essa é para mim, não é?”, dirá num aparte o sempre esquivo Bill Murray.) Cranston, Gerwig, Schreiber, Murray, Balaban e Goldblum fizeram a deslocação a Berlim e animaram a conferência de imprensa cantando os parabéns a Koju Rankin, o jovem que dá voz a Atari e que celebrava o seu 11.º aniversário, ou dedicando Barbara Ann dos Beach Boys a Bob Balaban, ou partilhando os cães que têm em casa.

Anderson faz muita questão de explicar que, apesar do filme ser um soufflé, houve o maior respeito e o maior cuidado nas referências à cultura japonesa, e Ilha dos Cães leva a questão tão a sério que tudo é literalmente bilingue. No filme, todos os cães se expressam em inglês falado pelo elenco americano, e todas as personagens humanas, entregues a actores japoneses, falam japonês não legendado (mas “traduzido” de outras formas). Genéricos, cartazes, letreiros, tudo o que se vê e rodeia este filme que começa e acaba ao som dos tambores taiko está ao mesmo tempo em caracteres nipónicos e em alfabeto ocidental, confirmando o pontilhismo maníaco de Anderson com os pormenores. “Por vezes, sinto que estou a colocar demasiadas coisas no filme, é verdade”, diz. “Não quero ter um paladar limitado a apenas alguns sabores. Mas, por outro lado, até quero...”

Ilha dos Cães, então, é aquela coisa estranha, que faz pensar na célebre experiência filosófica de Erwin Schrödinger e do gato fechado numa caixa: é mais do mesmo que Wes Anderson faz, e é outra coisa diferente do que Wes Anderson costuma fazer (e não é por ser em animação). Mas dá vontade, muita vontade, de voltar a vê-lo. Bill Murray diz, às tantas: “É o melhor filme que já fiz!”

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