Wes Anderson abre uma Berlinale “a marcar passo”
Edição 2018 do festival alemão arranca com Isle of Dogs, animação do autor de Grand Budapest Hotel, à sombra de um abaixo-assinado de 79 cineastas pedindo “um novo início” para Berlim. Mas terá de se esperar pela saída de Dieter Kosslick, presidente desde 2001.
Da última vez que Wes Anderson esteve em Berlim, em 2014, coube-lhe abrir o festival com o seu Grand Budapest Hotel — cinco anos depois, o americano volta a ter honras de abertura oficial de Berlim com Ilha dos Cães, a sua nova experiência no cinema de animação depois do Fantástico Sr. Raposo. Mas que Ilha dos Cães seja a abertura de Berlim 2018 — e que seja, ao mesmo tempo, um dos poucos filmes de peso numa competição que se adivinha muito morna — parece apenas sublinhar os problemas que a imprensa alemã já aponta há anos e que “transbordaram” no final de 2017, quando a revista Der Spiegel publicou uma carta aberta de 79 cineastas alemães pedindo um “novo começo” para o festival.
Um dos realizadores que assinou a carta, Christian Petzold (Barbara; Phoenix), está este ano na competição oficial, com Transit; um dos que não assinaram, Tom Tykwer (Corre, Lola, Corre; O Perfume), é presidente do júri. Muitos dos signatários da carta foram premiados ao longo da história do festival, e vão de cineastas jovens como Maren Ade (Toni Erdmann), Fatih Akin (Do Outro Lado) ou Sebastian Schipper (Victoria) a veteranos como Edgar Reitz, Volker Schlöndorff ou Margarethe von Trotta. Mas estas quatro dezenas de nomes não pedem a cabeça de Dieter Kosslick, o executivo que dirige o certame desde 2001, que o tornou um evento de “passadeira vermelha” e num ponto obrigatório do calendário da indústria (através do Mercado Europeu do Filme). Kosslick já tem saída marcada, após a edição 2019, e o que os signatários pedem é que o seu substituto — cujo mandato terá início em 2020, ano do 70.º aniversário do festival — faça um esforço para, nas palavras da carta, “renovar e fazer reviver a Berlinale”.
A carta assume publicamente a frustração sentida durante a direcção de Kosslick, acusado de ter deixado o certame “ficar para trás” com as suas escolhas mais convencionais e de ter perdido demasiados filmes para Cannes e Veneza (ficou célebre o caso de Filho de Saul, o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2016 que Berlim perdeu para Cannes por não o ter querido na competição principal).
Ao mesmo tempo, reflecte a sensação de Berlim ter voltado a “perder o rumo” depois de um par de anos em que a selecção parecia ter feito um esforço de actualização (com a chamada a concurso de nomes como Pablo Larraín, Andrew Haigh, Lav Diaz ou Mia Hansen-Løve). A competição de 2018 parece, pelo menos no papel, dar razão aos críticos. Não deixa de haver filmes que dão água na boca — um remake por Benoît Jacquot do Eva de Joseph Losey, com Isabelle Huppert no papel que foi há meio século de Jeanne Moreau; o filme de Christian Petzold, uma das figuras mais importantes do actual cinema europeu; Dovlatov, do demasiado raro russo Alexei German Jr; Season of the Devil, a ópera rock de quatro horas do filipino Diaz.
Mas, ainda assim, nenhum destes cineastas é desconhecido ou inesperado; e por cada um deles a competição abre espaço para o francês Cédric Kahn, a polaca Malgorzata Szumowska ou o norueguês Erik Poppe, autores de “segunda linha” que vão sobrevivendo sem brilho no circuito de festivais. É sempre possível que algum deles assine um grande filme, mas as expectativas não vão altas. (Poppe, cuja Escolha do Rei foi nomeada para o Óscar no ano passado, traz à competição Utøya 11. Juli, sobre os atentados de 11 de Julho de 2011 perpetrados pelo extremista Anders Breivik que causaram 77 mortos, filme que parece talhado à medida de Berlim enquanto festival “do tema”.)
Já nem a relação com o festival americano de Sundance ajuda: se este ano se aproveitam o último filme de Gus van Sant, Don’t Worry, He Won’t Go Far on Foot, e o quase-western Damsel, com Robert Pattinson e Mia Wasikowska, a aposta em Sundance perdeu-se quando se percebeu o pouco impacto dessa produção corrente nos mercados europeus. A China ou a América Latina, focos importantes de descoberta nos anos 2000, partiram para outras paragens. O desafio, agora, para Berlim será tentar recuperar o terreno perdido para Locarno, festival que “renasceu” como ponto de encontro do cinema novo sem deixar de apelar ao grande público, ao mesmo tempo que Berlim se deixava cair na modorra. E para isso será precisa outra pessoa que não Dieter Kosslick.
A resolução do quebra-cabeças não é impossível, nem é a primeira vez que Berlim enfrenta esta dúvida. Foi de uma situação semelhante que nasceu o Forum, criado em 1971 em resposta às crises e controvérsias como uma manifestação paralela que abria espaço ao cinema novo (e este ano, tal como em anos anteriores, volta a ser no Forum que está a programação mais interessante). Mas não será a criação de uma nova secção a resolver o problema desta vez (há quem se queixe que a Berlinale já tem, assim como assim, demasiadas secções) — e os 300 mil bilhetes vendidos anualmente para o festival, que validam até certo ponto a abordagem de Kosslick, não tornam a solução fácil. Berlim 2018 abre a marcar passo; a ver vamos como fecha.