A grande peregrinação
Constantinopla, o clássico do Edmondo de Amicis, estava até agora inédito em português na sua versão integral. Chega numa tradução do italiano de Margarida Periquito, na colecção de viagens da Tinta da China.
O livro mais conhecido do escritor, jornalista e militar Edmondo de Amicis (1846-1908) não será lido hoje como a sua melhor obra. Coração (1886) assim se chama, pretendeu criar e fixar uma identidade nacional numa Itália recém-unificada. Muito diferente deste Constantinopla, uma reportagem sobre um dos lugares mais clássicos de peregrinação do viajante, cruzamento de civilizações, marcado pela diferença religiosa, cultural, metáfora da ligação entre Ocidente e Oriente, antiguidade e modernidade. Nele, Amicis consegue descrever o espanto como a decepção num fresco que é um retrato detalhado e complexo, documento para ajudar a entender muitos dos conflitos e tensões do mundo actual.
Publicado em 1877, Constantinopla, título recém-chegado à colecção de viagens da Tinta da China, começa por situar o leitor no assombro que é a primeira visão de uma cidade mitificada, “o mais belo lugar do mundo, na opinião do mundo inteiro”, antecipava o escritor no barco que o levara desde o Estreito de Messina, que separa a península de Itália da Sicília, até ao Bósforo. Dez dias depois, a visão: “Uma sobra enorme, uma mole muito alta e leve, ainda coberta por um véu diáfano, erguia-se para o céu no cimo de um outeiro, e arredondava-se gloriosamente no ar, no meio de quatro minaretes desmedidos e esbeltos, cujos ápices prateados brilhavam com os primeiros raios de sol. ‘Santa Sofia!’”.
É uma descrição privilegiada, como refere Umberto Eco no prefácio a esta edição. O comum viajante actual dificilmente poderá partilhar o pasmo desse outro viajante do século XIX que chegava de barco à cidade que foi capaz de construir à volta de si mesma uma literatura de que o livro de Amicis é um dos melhores exemplares. Essa quase impossibilidade de chegar à cidade por barco é, assim, mais um argumento para se fixar na descrição de Edmondo de Amicis e ver nela o que de melhor a literatura pode dar: a possibilidade de sentir qualquer coisa que se adivinha real mas não se pode experimentar.
Eco levou o livro de Amicis na sua primeira vez em Istambul, foi o seu guia na cidade com três nomes, correspondentes a três civilizações. Bizâncio, Constantinopla, Istambul. A pé, numa hora, como ainda sublinha Eco, atravessam-se “três épocas”. Aqui, basta seguir os passos de Amicis e aprender com ele todas as personalidades e vozes que compõem o fresco que é Istambul, a cidade que ele viu ao longe, do mar “... uma grande cidade espalhada porém imenso jardim, sobre um litoral ora cortado por ravinas a pique, revestidas de sicómoros, ora descendo suavemente em verdes campinas, que se abrem em pequenas enseadas cheias de sombra e de flores; e o espelho azul do Bósforo a reflectir toda essa beleza.” Uma sensação total que o escritor resume desta forma: “o meu lugar naquele navio valia todos os vossos tesouros, não trocaria um olhar meu por um império.”
Foi antes da imersão na cidade. Percorreu-a pelas margens, contornou o Corno de Ouro, mergulhou na Gálata, o centro. Já imerso, há o confronto com a estranheza e a circunstância do viajante perante a História, contextualizando o que vê e ouve com as narrativas de séculos de peregrinações e descrições anteriores a ele. Ouvimos a sua voz, as suas perguntas rectóricas, a reprodução de diálogos, e sentimos o privilégio da cumplicidade com alguém que teve acesso ao inacessível e nos contou tudo, e nos deu tudo a sentir. Amicis é o observador que tenta despir preconceitos e se deixa contaminar pelas vozes, os odores, os sinais de um fim civilizacional, o temor pelo que isso possa ser. “O que será esta cidade dentro de um ou dois séculos, mesmo que os turcos não sejam corridos da Europa? Que lástima! O grande sacrifício da beleza à civilização já se terá consumado.” É outra sensação que o leitor, viajante ou não, pode entender, o de estar num lugar sempre sujeito e sensível às oscilações civilizacionais, tão perene quanto mortal, uma cidade à imagem da fragilidade humana em todas as suas manifestações.
Já lemos aquele que é talvez o seu mais relevante escritor, o Nobel da literatura Orhan Pamuk, sobre esse lugar que é o centro da sua escrita. Ele louvou Amicis. Um século antes, e sendo estrangeiro, o italiano foi capaz de transmitir a essência da cidade. O café, os dervixes, os cães, o negrume da noite e o brilho dois dias, as fadas, os bazares, a tirania e uma vivência do tempo demorada, em que cada um aceita o seu papel de espectador temporário do mundo. “A índole daquele povo, que vive, como disse um poeta, numa espécie de íntima familiaridade com a morte, considerando a vida uma peregrinação durante a qual não há tempo, nem interesse, para estabelecer grandes objectivos, alcançáveis através de longas fadigas, pouco a pouco vai contagiando o europeu, e faz com querele comece a viver um dia de cada em, sem analisar muito o seu íntimo, e procure, na medida do possível, representar neste mundo o simples e tranquilo papel de espectador.”
Amicis está no oposto desse modo de ser onde nada parece causar espanto. Ele ousou sair e somos nós os espectadores privilegiados dessa peregrinação.