Porque insiste a Igreja em meter-se na nossa cama?
Há muita gente chocada? Louvado seja Deus – é sinal de que a sociedade considera inaceitável que se chame “caminho cristão” a uma vida em casal em que o sexo está proibido.
À pergunta do título um bom católico responderá: porque a Igreja deve meter-se em todo o lado. Está bem respondido. Para quem acredita em Cristo como “caminho, verdade e vida”, é natural que todas as dimensões da existência sejam interpretadas à luz dos seus ensinamentos — daquilo que um cristão diz na rua àquilo que faz na cama. O problema, claro está, é que quatro breves evangelhos foram manifestamente insuficientes para Jesus se pronunciar sobre todos os assuntos do mundo. Pior: enquanto andou a pregar pela Palestina manifestou um evidente desinteresse pelas questões da moral sexual — interesse inversamente proporcional àquele que a Igreja Católica tem manifestado sobre o tema nos últimos dois mil anos. O peso do sexo na doutrina, no magistério e na visão do pecado é avassalador desde pelo menos Santo Agostinho.
Há quem diga, como o abominado teólogo alemão Eugen Drewermann, que esta obsessão está relacionada com o peso do celibato: o facto de o sexo estar vedado aos sacerdotes conduziu a Igreja Católica a uma obsessão com o colchão — e a uma enorme devoção à Virgem Maria, mãe imaculada, sem paralelo nas Igrejas protestantes. Mas seja qual for a origem do problema, a verdade é que nada tem prejudicado mais a mensagem da Igreja no último século do que a sua doutrina sexual. Questões perfeitamente acessórias, como o uso de contraceptivos, contaminaram debates fundamentais, como o do aborto e a devastadora tragédia da pedofilia, camuflada durante décadas pelo Vaticano, juntou ao absurdo da teoria a hipocrisia das piores práticas. Hoje em dia, sempre que a Igreja chega às primeiras páginas dos jornais, ou é por causa da popularidade do papa Francisco, ou é por causa do sexo.
Assim aconteceu, mais uma vez, com o convite à abstinência sexual dos casais recasados proposto por D. Manuel Clemente, de forma a que estes possam aceder aos sacramentos. O que é mais paradoxal nesta proposta é ela nascer de uma vontade enorme de abertura demonstrada pelo Papa. Francisco tem-se esforçado por aproximar as práticas da Igreja do espírito dos Evangelhos — se Cristo não veio para os justos, mas para os pecadores, como justificar que a Igreja recuse a confissão a quem falhou um casamento? Se a Eucaristia não é o lugar onde se reúnem os cristãos perfeitos, mas todos aqueles que procuram a misericórdia de Deus, como negar a comunhão a quem tenta reconstruir a vida?
A este desafio a Igreja tem respondido de forma burocrática, através de uma indústria da anulação de matrimónios (mais de 200 pedidos em Portugal só em 2016), que em muitos casos não é mais do que batota espiritual. Ora, não é aceitável responder à batota espiritual com um novo tipo de batota, agora carnal: os católicos recasados podem comungar e confessar-se desde que vivam em celibato. O padre Miguel Almeida alertou no Observador que a nota pastoral de D. Manuel Clemente é muito mais rica e complexa do que as notícias deram a entender. Com certeza — mas o problema é que está lá mesmo escrito que os padres devem “propor a vida em continência” a um casal recasado com um matrimónio anterior válido. O raciocínio é este: sem sexo não há adultério, logo, o casal estará em condições técnicas para poder comungar. Há muita gente chocada? Louvado seja Deus — é sinal de que a sociedade considera inaceitável que se chame “caminho cristão” a uma vida em casal em que o sexo está proibido. Às vezes, o mundo é mais fiel a Cristo do que a própria Igreja.