Divorciados
Esta abertura da Igreja é um sinal de transformação importante no plano da espiritualidade.
A abertura por muitos cristãos desejada começa a desenhar-se na Igreja em Portugal. Singular e precursor, D. Jorge Ortiga é o primeiro bispo a concretizar as diretrizes da Exortação Apostólica Amoris Laeticia, A Alegria do Amor, que o Papa Francisco proclamou em 19 de março de 2016. Dois anos depois da Assembleia Extraordinária do Sínodo dos Bispos sobre a Família, o Papa usa o seu estilo direto de comunicar para, logo a abrir esta Exortação, anunciar o desenvolvimento do seu texto a partir da Sagrada Escritura: “A partir disso, considerarei a situação atual das famílias, para manter os pés assentes na terra.” [1] De seguida, comenta os documentos pos-sinodais, cita conclusões de bispos e teólogos, enuncia as suas orientações pastorais.
A surpresa marcou o recente pronunciamento do arcebispo primaz de Braga sobre as inéditas e inovadoras reformas que vai empreender na sua arquidiocese, de acordo com o pensamento do Papa, em face da crise que abala as famílias e os casais, na realidade do nosso tempo. Esta abertura da Igreja é um sinal de transformação importante no plano da espiritualidade para os muitos leigos e consagrados que a têm como causa e esperança de que se concretizem, em pleno, as conclusões do Concílio Vaticano II.
Em proporção calculada, quatro em cada dez portugueses afirmam-se e assumem-se católicos praticantes. Além destes, muitos outros se afastaram dessa condição, deixando de frequentar a Igreja, divorciados e recasados, devido a específicas circunstâncias da sua vida privada. Este afastamento causa a não evangelização dos filhos e implica a perda para a Igreja católica de muitos milhares de jovens que passam a desconhecer a doutrina e a sua prática. Ou que os levam a desistir de participar em movimentos de voluntariado, de apostolado, de aprofundamento da sua fé. O tema da educação dos filhos é fulcral no pensamento do Papa, que sobre ele se pronuncia num especial capítulo de Amoris Laeticia.
Para a vivência religiosa dos divorciados recasados em união civil, que não têm acesso aos sacramentos, o discernimento e o primado da consciência sobre a tradição são contemplados na Carta Pastoral do Arcebispo de Braga. Construir a Casa sobre a Rocha, o título desta carta, é metáfora de alicerce e solidez inspirada no Evangelho de Mateus (Mt 7, 21-27). Em simultâneo e sempre de acordo com o Papa Francisco, no texto da Pastoral Familiar está previsto o apoio, com acompanhamento multidisciplinar nas situações de fragilidade, de conflito. Nas famílias abaladas por violências, por dependências, por incompatibilidades, por sexualidade mal resolvida, este apoio por médicos, psicólogos, psiquiatras, poderá salvar casos limite de sobrevivência em tempos de crise.
“Não queremos uma pastoral só alicerçada em tradições, não podemos fechar os olhos aos desafios e problemas que as famílias enfrentam hoje”, disse o arcebispo de Braga na conferência de imprensa em que apresentou os documentos pastorais que confirmam a decisão. Logo que divulgada a notícia, foram imediatas as reações, nas redes sociais e na imprensa, explodindo as divisões entre os católicos conservadores que contestam o Papa Francisco e aqueles que com ele pensam que “a Igreja não é uma alfândega: é a casa paterna, onde há lugar para todos” [2] e com ele esperam uma Igreja de misericórdia, de acolhimento, de integração.
Que os divorciados possam aceder aos sacramentos, depois de preparados e acompanhados num longo e exigente percurso é, assim, motivo de escândalo para o setor da Igreja liderado pelo cardeal norte-americano Raymond Burke, para quem as orientações pós-sinodais do Papa não implicam necessária obediência. Este setor defende a imobilidade do mundo e dos poderes estabelecidos, teme o confronto com a realidade, recusa o debate sobre as grandes questões. Para esses católicos, podem ser chocantes algumas passagens de Amoris Laeticia: “Os batizados que se divorciaram e tornaram a casar civilmente devem ser mais integrados na comunidade cristã [...], não só não se devem sentir excomungados, mas podem viver e maturar como membros vivos da Igreja” [3]; ou fragmentos mais explícitos: “E convido os pastores a escutar, com carinho e serenidade, com o desejo sincero de entrar no coração do drama das pessoas e compreender o seu ponto de vista, para as ajudar a viver melhor e a reconhecer o seu lugar na Igreja.” [4]
Demorada para ser verdade, a abertura da Igreja não é consenso na nossa sociedade de matriz cristã. Mas a esperança de muitos poderá ser certeza, apesar da instabilidade deste tempo que vivemos. Escritora e jornalista, membro do Movimento Nós Somos Igreja
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
[1] A Alegria do Amor, ed. Paulus, p7
[2] ibidem, p209
[3] ibidem p199
[4] ibidem p210-211