Quem respeita a Itália?
Um país politicamente instável e sob pressão populista deixaria de ter voz na Europa.
Para muitos europeus, as eleições italianas despertam curiosidade. Não faltam razões. São “interessantes”, quando mais não seja pelo regresso de Silvio Berlusconi e pelo “circo” dos “cinco estrelas” (M5S) — são antipolíticos, eurocépticos e antivacinas. Berlusconi aliou-se ao “lepenista” Matteo Salvini, da Liga, para ganhar as eleições, mas garante em Bruxelas que tenciona travar os eurocépticos. Paradoxo: o Governo tem bons resultados económicos mas o Partido Democrático (PD) cai nas sondagens.
Fascinante ainda: são eleições absolutamente imprevisíveis, não pelas sondagens que se mantêm relativamente estáveis, mas pela incógnita do desfecho: delas pode sair um governo “antieuropeu” com participação da extrema-direita, uma coligação dos “moderados” entre Berlusconi e Matteo Renzi”, um “governo técnico” ou coisa nenhuma com a possível repetição do voto.
Bruxelas e a maioria dos governantes europeus inquietam-se. Passado o susto francês de 2016-17, com a ascensão de Marine Le Pen, resolvida pelo “milagre” Emmanuel Macron, estabilizada a crise política alemã, arrefecida a crise catalã, segue-se a Itália, onde tudo se pode esperar. É que estas eleições, mais do que aos italianos, que perante elas manifestam mais fastio do que entusiasmo, parecem interessar sobretudo à União Europeia.
A Itália, dizem as sondagens, tornou-se um dos países mais eurocépticos da Europa. É óbvio que a crise financeira de 2008 e a crise da imigração abriram brechas na opinião dos italianos sobre os parceiros europeus. Mas é difícil conhecer os sentimentos reais. Depende da pergunta.
O grau de “confiança” na UE é baixíssimo. Mas um inquérito feito no ano passado pelo instituto Doxa, a propósito do 60.º aniversário do Tratado de Roma, indicava que três quartos dos italianos respondiam que a pertença à UE tinha “mais vantagens que desvantagens” ou “iguais vantagens e desvantagens”. Só para 20,4% tinha “mais desvantagens do que vantagens”. Reconheciam que, na crise, as coisas teriam sido piores fora da UE.
Risco de solidão
Para lá da flutuação de opiniões — e a par de um crescimento da xenofobia que a proximidade das eleições acentuou —, a política italiana está a ser varrida por um vento soberanista. É um fenómeno europeu. O que acontece, explica o economista Sergio Fabbrini, é que, mais por necessidade do que por escolha, os soberanistas italianos não podem seguir o modelo do “Brexit” e, “por isso, decidiram contestar a UE a partir de dentro”.
Os soberanistas “projectam superar o horizonte da democracia representativa e afastar a Itália da interdependência com a Europa integrada”. Teme que estas eleições dêem lugar a uma crise sistémica que ponha em risco “as opções fundamentais” do país.
Apela às elites. “Não obstante a Europa ter sido a condição do nosso renascimento nacional, as forças soberanistas põem em questão a nova relação ‘constituinte’ com a Europa. Se as instituições políticas e eleitorais não estão capazes de manter a preservação daquela relação (como chegou a acontecer em França) é então necessário que aquela relação seja protegida pelas nossas classes dirigentes — como está a acontecer na Alemanha [com o acordo governamental CDU, CSU e SPD].”
O antigo primeiro-ministro italiano Enrico Letta lembra ao Politico o passado recente: “A Itália foi durante um longo período, durante a crise financeira, o ‘mau aluno’ da turma da zona euro, arriscando fazer ruir todo o sistema porque, ao contrário da Grécia, era too big para ser salva. (...) Estávamos num canto e ninguém ouvia as nossas ideias.”
A Itália arrisca-se a uma nova fase de marginalização — mas não é simples, antes ameaçador, tratando-se da terceira economia do euro.
Os soberanistas
Sem medo de errar, podemos dizer que o PD, de Matteo Renzi e Paolo Gentiloni, é a única força inequivocamente pró- europeia. O populismo eurocéptico concentra-se no Movimento 5 Estrelas e na Liga. De momento, meteram no bolso as propostas de referendo sobre a UE ou o euro, irrealizável porque inconstitucional. Mas não as esqueceram. Para lá dos temas propriamente europeus, ambos se propõem anular as reformas dos governos Monti e Renzi — do decreto das pensões de reforma às leis laborais. E todos anunciam a baixa geral dos impostos.
Berlusconi gere a ambiguidade, porque tem “dois ferros no fogo”: a aliança da direita ou um acordo com o PD. Em Bruxelas, juntos dos amigos do Partido Popular Europeu, garante da sua respeitabilidade, jura que respeitará os 3% do défice e não revogará as reformas feitas. Mas não o diz em voz alta na campanha. Mas também na “esquerda da esquerda”, na coligação Livres e Iguais, que reúne entre outros os dissidentes do PD, há vozes que denunciam o euro como “instrumento de dominação económica e política por parte da oligarquia europeia”.
O centro-esquerda divide-se sobre o M5S. Marco Damilano, director do L’Espresso, defende uma tese clara: “Depois do 4 de Março vence quem domesticar o antisistema.” Invocando argumentos da História italiana, defende a integração institucional dos “cinco estrelas”, a força política mais dinâmica da Itália. O adversário irredutível é a Liga. “Hoje, na Itália, a pergunta é: quem conseguirá concluir o percurso iniciado há cinco anos e constitucionalizar o Movimento Cinco Estrelas?”
Tese oposta defende Claudio Cerasa, director do Il Foglio. “Quem tem a coragem de dizer que o M5S é um perigo para a Itália?” Não é um partido como os outros. “É um partido que representa um perigo para a nossa economia, para a nossa democracia e para a nossa Constituição, para o nosso Estado de direito, e, inclusive, para a nossa saúde [a questão das vacinas]. E que sonha desmontar o nosso welfare state através da abolição das leis que salvaram a Itália.”
O que potencia a “ameaça populista” é o grau de debilidade e fragilidade política dos partidos clássicos. Com a derrota no referendo de 2016, o PD deixou de ser capaz de defender o seu balanço de governo e foi isso que abriu a porta ao regresso de Berlusconi.
Disse que estas eleições acabam por ser miradas mais numa perspectiva europeia do que italiana. Uma Itália instável e submetida às pressões populistas anula a possibilidade de ser um factor de equilíbrio junto do eixo franco-alemão e de ter uma voz na reorganização da UE, escreve no Politico o analista Paul Taylor. “A Itália não consegue ser respeitada.”