“Ó Paulo entra, entra, vais ver como vamos subir um degrau”

As baixas temperaturas fizeram activar o plano de protecção das populações mais vulneráveis. Desde segunda-feira, há cama, comida e banho quente para quem, por esta altura, passa “frio, frio mesmo”. Na Estrela, o pavilhão da Lapa transformou-se num grande dormitório onde, pela primeira vez, quem não tem um tecto terá um espaço confortável para pernoitar.

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Miguel Manso
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Cristina e Paulo estão sentados numa das mesas da cantina improvisada que está montada no Pavilhão Municipal Manuel Castelbranco, na Graça. É ali que, este ano, está montado o "centro de operações" do plano de contingência para a população sem-abrigo que, por causa do frio, a autarquia activou às 19h00 de segunda-feira.

Já jantaram. Strogonoff, dizem, providenciado pela Cruz Vermelha. “É melhor do que dormir na rua. Sempre temos aqui uma refeição”, diz Cristina Paiva. Além de uma refeição, naquele pavilhão que costuma servir de casa ao clube de basquetebol Maria Pia, os que quiserem podem tomar banho e trocar de roupa.

Estavam no Rossio, na segunda-feira, quando uma carrinha passou e lhes perguntaram se queriam entrar e ir comer alguma coisa ao pavilhão. “Deve ser ali mesmo que está a nossa oportunidade”, disse Cristina para Paulo. E estava. 

Contam que chegaram ao pavilhão da Graça e, logo à entrada, na mesa da triagem, os encaminharam para uma associação, a Novos Rostos, Novos Desafios. Depois do jantar foram lá passar a noite. "Já não víamos uma cama há mais de um mês", diz Cristina enquanto ajeita a camisola verde e o gorro colorido que esconde alguns fios brancos do cabelo que se destacam na pele morena da mulher de 47 anos. "Víamos o saco de cama", completa o companheiro, Paulo Pinheiro, de 54.

As últimas noites de Cristina e Paulo foram passadas no aeroporto. Começaram por ir dormir para as partidas, mas a polícia "andava sempre em cima" e tiveram que se mudar para o piso 0, para a zona de aluguer de carros.

Mas, contam, houve um agente da PSP - o agente Correia - que se "interessou" pelo caso deles e que já os tinha referenciado áquela associação. Coincidência ou não, acabaram por ir parar ao sítio e às mãos das pessoas certas, acreditam. 

Cristina foi parar à rua, depois de ter vivido 21 anos sob o pesadelo da violência doméstica. Ganhou coragem e saiu de casa. Tem um processo a correr nos tribunais para tentar conseguir a guarda dos cinco filhos. Pouco depois conheceu Paulo no centro social do Exército de Salvação. Estão juntos há cinco meses. “E somos muito felizes, mesmo dormindo na rua”. 

Paulo passou 11 meses naquele centro. Há quatro anos ficou sem casa por ter sido despejado. Desde essa altura tem andado de abrigo em abrigo. “Vim acompanhá-la e fomos dormir para o aeroporto”, o “único espaço assim mais acolhedor”, conta. Mesmo assim tiveram de andar sempre a fugir, "de um lado para o outro". Dormiram num hospital, nas partidas do aeroporto, onde costumam pernoitar “muitos estrangeiros, brasileiros, romenos”. 

Nos primeiros tempos de rua, Cristina manteve o trabalho num lar. “Saía de casa às 5h00 da manhã e dormia no aeroporto. Andei assim dois meses. Só me deitava à uma da manhã porque é a hora a que as cargas e descargas fecham. E levantava-me às 5h00”. Mas “não dá para trabalhar e para estar a dormir na rua”.

Não têm passe social, nem “dinheiro nenhum, nenhum”. A alimentação fazem-na nas carrinhas das associaçãoes que costumam parar no Rossio ou em Santa Apolónia. Para jantar, iam até à Igreja de Santo António, junto à Sé. 

“Às vezes não mostrávamos o sofrimento que tínhamos. Não foi fácil este tempo que estivemos lá. Às vezes nem sentíamos as mãos e os pés”, diz Cristina que olha para Paulo para o acusar de ser rezingão e de, ao início, não querer entrar na carrinha que os levou até ao pavilhão. “Ó Paulo entra, entra, vais ver como vamos subir um degrau”, disse-lhe Cristina. “Eu não queria sair do aeroporto porque nós estávamos à espera de uma sinalização, que era precisamente esta", explica-se Paulo. 

“Fomos encontrá-los agora aqui. Já viu como é a vida?”, atira Cristina, a sorrir pela feliz coincidência e pelo final feliz que pressente e diz que merece ter. Junto a Paulo. 

Esta é a segunda noite que vão passar na associação. “Eles vão-nos ajudar a encontrar uma casa. E nós vamos agarrar esta oportunidade. Nós temos de ter um canto. Sem um canto não conseguimos ter um trabalho”, diz Paulo. Esperam não ter de sentir mais o frio que os impedia de dormir, embora as mãos e os pés gelados não lhes saia da memória.

Perto das 22h00, um responsável da associação interrompe a conversa para dizer que está na hora de regressarem à associação. “Ontem chegamos lá eram umas 9 da noite. Dormi até às 10h da manhã”, diz Cristina. Despedem-se e acompanham-no. “É que a gente merece mesmo ser feliz”. 

“Este blusão já fez ‘n’ vagas de frio”

Os que como Cristina e Paulo chegam ao pavilhão passam por uma primeira triagem. Aqueles que aceitam ter acompanhamento por parte das várias associações que ali estão são encaminhados para locais onde podem pernoitar. O pavilhão está aberto 24 horas. O trabalho faz-se com associações e voluntários que partem em carrinhas para fazer mais uma ronda para encontrar outras pessoas. 

O trabalho destas associações que, em conjunto com a câmara municipal, estão no terreno começa durante o dia. A ideia é que percorram as zonas e tentem encaminhar quem está na rua para os pontos de concentração definidos pela autarquia para que lá estejam à noite, quando começarem a passar carrinhas que os levam para o pavilhão. 

Amílcar Soudo está a postos para conduzir a carrinha de nove lugares por mais uma ronda. Tem 60 anos. Há 35 que conduz carros da câmara. No início era “motorista VIP” mas achou por bem “largar o fato e a gravata” e substituí-los pelo brinco nas orelhas e a corrente nas calças justas de ganga e dedicar-se a “ajudar quem mais precisa”. 

O destino é a praça do Rossio, um dos sete pontos de encontro, a par do Saldanha, Intendente (junto à saída do metro), Alcântara (junto ao Pingo Doce), Gare do Oriente, Santa Apolónia e Centro Comercial Colombo. 

"Paramos junto à [pastelaria] Suíça ou ao Teatro?", pergunta Amílcar. Acabaria por parar junto ao D. Maria II, onde uma carrinha da Comunidade Vida e Paz já estava a encaminhar quem ali se tinha juntado para as carrinhas e se juntarem no pavilhão. Têm passado os dias naquilo, diz uma das voluntárias, não em jeito de lamento, mas de quem se orgulha de já conhecer os comportamentos que, às vezes, podem não ser bem interpretados por quem não conhece a realidade de quem vive na rua. 

A ronda continua. Fica decidido que se vão percorrer as estações de metro - Rossio, Saldanha, Cais do Sodré e Intendente e Oriente - que estão, por estes dias, abertas para quem quer quiser lá pernoitar. Nos acessos à estação do Rossio não está ninguém. A viagem segue para o Saldanha.

Na carrinha, as conversas passam pela noite de segunda-feira, em que receberam no pavilhão o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que disse acreditar que estão criadas as condições para que não haja pessoas em situação de sem-abrigo no país até 2023. Neste momento, estão contabilizados mais de oito mil. Em Lisboa, a autarquia estima que existam na rua entre 330 e 350 pessoas. “Provavelmente hoje conseguimos tirar mais algumas”, diz Carlos Farias, que veste o casaco cor-de-laranja fluorescente e o identifica como técnico do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem Abrigo (NPISA) de Lisboa. 

“Este blusão já fez ‘n’ vagas de frio”, diz Amílcar, enquanto conduz em direcção ao Cais do Sodré, depois de ter passado pela estação do Saldanha que estava igualmente vazia. O mesmo se repetiu na estação do Intendente. Optou-se por passar na zona de Regueirão dos Anjos. O motorista e os dois técnicos que nos acompanham Não escondem a surpresa pelo que vêem. Cerca de uma dezena de pessoas estava,m recolhidas debaixo de mantas e cobertores por baixo dos arcos da íngreme rua. 

“Há casos em que as pessoas não querem mesmo resposta durante o ano e nestas situações aceitam. O técnico depois aproveita para motivar a pessoa a ficar mais tempo. Com alguns consegue-se, outros não”, diz Carlos Farias.

Na zona da Avenida Almirante Reis, todos concordam que há “muito menos” pessoas na rua do que “há uns anos”. “Quando comecei nesta vida, era um em cada canto”, diz Amílcar. A volta acabou sem que fosse recolhido qualquer sem-abrigo. 

"Agora é começar de novo e erguer a cabeça"

Às 23h30 é tempo de regresso ao pavilhão para acompanhar os que quiserem seguir para o Pavilhão Desportivo da Lapa, na freguesia da Estrela, onde este ano e pela primeira vez, é possível que pessoas em situação de sem-abrigo pernoitem. Com espaço para acolher também os que têm animais de estimação e com apoio veterinário. 

“O objectivo é assegurar que o acompanhamento é feito para além deste momento”, diz o presidente da junta da Estrela, Luís Newton, enquanto espera que cheguem 14 pessoas do pavilhão da Graça. Esta é uma forma de “complementar a oferta da câmara, descentralizando-a no território”, diz o autarca. Para que as pessoas possam dormir de forma mais confortável. 

O pavilhão da Lapa transformou-se num grande dormitório com 20 camas, colocadas numa parte do campo. Há um espaço para acompanhamento médico e balneários para que os que quiserem tomar banho e trocar de roupa. Há uma mesa com bolachas, chá, fruta para comerem antes de se deitar. De manhã será servido o pequeno-almoço.

"Este ano quisemos fazer frente algumas das necessidades que fomos identificando com o nosso trabalho em campo, nomeadamente com os animais. Havia o problema de afastar o dono do animal e isso causava algum incómodo e por vezes eles rejeitavam as ajudas por isso. Assim como a parte da pernoita", diz Vasco Barata Salgueiro, o presidente da associação Atos de Mudança que se juntou à junta da freguesia.

As luzes eram para apagar à meia-noite, mas ainda estão a chegar pessoas. Entre os que chegam está Nuno Figueiredo. Acabou de chegar de Seia, onde foi visitar a família. E não tinha para onde ir. Está na rua desde o dia 12 de Dezembro porque diz que o senhorio não quis aceitar a renda da Santa Casa. Desanimado e cansado, começa por contar “o ano negativo” que está a ter com a perda de familiares. 

"Parti a corda, recaí. Mas espero que não volte a acontecer. Desde 2010 que estou limpo. Nem eu estava à espera que fosse tão duro", lamenta.

Ali, na Lapa, tem direito ao seu colchão e à sua almofada e a uma cadeira de plástico branco para colocar os seus pertences. "Agora é acreditar, começar de novo e erguer a cabeça", diz Nuno. Pelo menos durante aquela noite, os aquecedores colocados por baixo das tabelas de basquetebol vão fazê-lo esquecer, por momentos, a noite fria, com temperaturas negativas, que passou em Seia, num barracão. 

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